Entrevista: Alfredo Sternheim – Parte 1

Dossiê Alfredo Sternheim

Entrevista com Alfredo Sternheim
Parte 1: Começo de tudo

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Dênis Arrepol

Zingu! – Em sua autobiografia, você conta que sua juventude foi muito solitária. Por quê?

Alfredo Sternheim – Nossa, estou me sentindo no divã (risos). Era solitário por conta da formação familiar. Era o irmão caçula e minha mãe me mimava muito. Quando tinha nove anos de idade, fizemos uma viagem ao Marrocos – minha mãe era de lá -, atrás de uma herança que nunca se concretizou. Lá, fiquei muito doente, com anemia. Cogitaram até coisa pior. Daí em diante, passei a ser muito mimado, não me deixavam sair sozinho. E o companheiro da solidão foi o cinema. Fiz um teatrinho em casa, que meu irmão ajudou a construir e via muito filme. Meu pai comprou uma televisão, que só tinha dois canais, e passava muitos filmes com legendas, naquela época. Foi uma descoberta para mim, o cinema pela televisão – mesmo que já freqüentasse as salas. Já comprava a [revista] Cinelândia. Aos 12 anos, acompanhado de minha vó, fui até a porta do hotel Jaraguá, no Festival do 4º Centenário, em 1954, para ver se conseguia autógrafo da Joan Fontaine, Errol Flynn. Nenhum deles me deu autógrafo, só me deu a Ninon Sevilha, uma atriz mexicana. Os americanos passavam e falavam “I can’t”. Havia cordões de isolamento, guardas. Um deles até me deixou passar. Cheguei perto da Joan Fontaine, Rebecca, a Mulher Inesquecível, e a desgraçada não me deu o autógrafo. Nessa época, já encarava o cinema com vontade de ser ator. Minha mãe tinha um amigo espanhol que trabalhava na Vera Cruz como técnico auxiliar de câmera. Fui visitar a Vera Cruz com ela. Gente, aquilo foi um desbunde. Não tinha ninguém filmando, havia acabado de terminar Sinhá Moça. Fiquei fascinado por aquilo. O fascínio pelo cinema foi aumentando, aumentado… Quando tinha 14 anos, esse Marcial Afonso, o amigo de minha mãe, disse que estavam precisando de figurantes para as filmagens de Osso, Amor e Papagaios. Nossa! Às 6h da manhã, peguei o ônibus em frente ao TBC, e fiz dois dias de figuração. Os figurantes ficavam conversando, jogando baralho e eu ficava o tempo inteiro acompanhando a feitura dos takes. Eram dois diretores, Carlos Alberto de Souza Barros e Cesar Memôlo Júnior. Comecei a ver o que era campo/contracampo, via o que a continuista escrevia. Era um pentelho. Como estava por perto, os diretores já me indicavam: “Fica lá de figurante.” E eu ia. Daqui a pouco, “fica lá… espera um pouco, você já apareceu no campo, não pode aparecer no contracampo”. Foi uma descoberta. Comecei a ler mais sobre cinema. Livros em francês.

Alfredo2-300x225Z – Você aprendeu francês no colégio?

AS – Não, meus pais falavam francês. Minha mãe era do Marrocos e meu pai da Alemanha. No ginásio, tinha aula de francês. Nessa época, surgiu também o Cineclube Dom Vital. Tinha 15 anos quando o vi no jornal. Comecei a frequentar e fiz muitos amigos. O Gustavo Dahl era o presidente.

Z – Você conta que depois de ver Osso, Amor e Papagaios, você desistiu de ser ator. Por quê?

AS – Eu me achei horrível. Fui no Cine Broadway, vazio – porque o filme foi um fiasco -, na primeira sessão, às 14h. Não tinha noção de montagem, de roteiro – nem sabia como era a história; hoje acho um senhor filme, não porque fiz figuração. Sei que uma hora levantei para me ver, e um cara gritou: “Senta aí, pô”. (risos) Fiquei para outra sessão, porque nessa época isso era permitido. Saí da sessão pensando: “De ator, não tenho jeito”. Mas gostei da mecânica da direção. Com o Cineclube e lendo muito história do cinema – tinha um livro chamado Histoire Populaire du Cinema -, comecei a descobrir o que tinha passado no cinema.

Z – Como funcionava o Cineclube?

AS – Ia todo semana. Funcionava numa sala do Edifício Galeria Califórnia, que ainda existe na Rua Barão de Itapetininga. Nos reuníamos para debater um filme que estivesse em cartaz no cinema ou um que estivesse sendo exibido no Museu de Arte de São Paulo – como não existia vídeo, DVD, nem nada, os filmes do passado eram exibidos de vez em quando, com patrocínio, da Embaixada americana ou do Consulado francês, ou algo assim. Lembro de um sábado que fiquei das 14h até quase meia-noite e assisti Marinheiro por Descuido, do Buster Keaton, Tabu, do Murnau, e a última sessão era Intolerância, do Griffith, três horas e tantas de filme. Levei até lanche. Às terças-feiras, das 19h às 22h, a gente debatia o filme. Cada debate tinha um relator – alguém do Cineclube era encarregado de fazer o comentário inicial. Não me esqueço da minha primeira vez como relator. O filme era As Damas do Bois de Boulogne, do Robert Bresson, que hoje acho uma chatice. Na época, gostei bastante. Tinha um cara chamado Hélio Furtado do Amaral, que era professor de filmologia de Minas Gerais. Ele gostou do meu relatório e disse que iria publicar em O Diário, de Belo Horizonte, no suplemento literário ou cultural, e publicou, ao lado de Otto Maria Carpeaux, William Faukner. Para um garoto de 15 anos, nossa, ter um artigo ao lado de William Faukner era uma coisa incrível. Mostrei em casa, comprei uns dez exemplares – acho que o cara da banca na São João não entendeu. (risos) O Cineclube tinha também, de vez em quando, palestras de profissionais de cinema: Pedro Farkas, Walter Hugo Khouri, Rubem Biáfora, Máximo Barro… Essas pessoas me foram abrindo a cabeça para o cinema. Freqüentei lá entre 1958 e 1961. Fui ver a filmagem de A Garganta do Diabo, do Khouri, pois ele havia pegado um amigo meu, lá do Cineclube, o João Batista Perillo, que havia estudado cinema no Centro Sperimentale de Roma, para ser fotógrafo de cena. O filme foi rodado na Foz do Iguaçu e na Vera Cruz. Aquilo para mim foi um êxtase, ver as filmagens com a Odete Lara e Edla Van Steen. Meu pai queria que eu fosse economista e estudava na Escola de Comércio Álvares Penteado, equivalente ao ginásio, que não tinha nada a ver comigo. Queria fazer cinema. Era uma obsessão. Em 1961, o Khouri anunciou que iria fazer A Ilha e que precisava de um segundo assistente, para fazer continuidade. Me ofereci. “Você sabe o que é continuidade?” “Ah, claro!” Mentira, não sabia nada. (risos) Tinha noção um pouco do que era. As filmagens foram tão complicadas que virei primeiro e único assistente – e tinham 3! Era assistente, contra-regra e continuista. Foi um aprendizado fantástico. 90 dias de filmagem. As câmeras eram pesadíssimas na época. Eram dez personagens.Alfredo3-300x225

Z – Você sabe o que aconteceu com a Lyris Castellani, que fez esse filme?

AS – Não. Não tenho idéia. Foi minha paixão. Ainda não sabia qual era a minha. Fiquei acabado. Agora é uma que não quero mais ver, quero conservar a imagem. Nunca mais consegui ouvi alguém falar “ah, encontrei a Lyris Castellani” – e isso é muito comum de acontecer na vida.

Z – Depois de A Ilha, já veio o Noite Vazia?

AS – Não foi tão em seguida assim. Porque as filmagens foram muito complicadas. Eram para ser 60 dias, quase tudo em Bertioga. Mas chovia muito. Nós ficamos hospedados na colônia de férias do SESC e depois não nos queriam mais por mau comportamento (risos). Fomos para a Vera Cruz terminar o filme. A história é muito bacana. Eles se perdem numa ilha e têm um acampamento de barracas, que foi feito na praia do Perequê, entre Bertioga e Guarujá. Ele pretendia fazer as noturnas também lá. Os acampamentos foram construídos nos estúdios da Vera Cruz – tem um estúdio gigantesco lá, em que chegaram até a fazer filmes americanos de monstros -, e fizemos a praia. Caminhões e caminhões de areia. A única coisa que não tinha era o mar, lógico. O irmão do Khouri perdeu o rolo fotográfico do cenário, e tinha que esperar o copião – não existia polaróide naquela época. Mas deu certo, ninguém nota a diferença. Perfeito. Modéstia à parte, fui um grande continuísta. (risos) Meu pai dizia que quando acabasse a festa das filmagens, voltaria para o escritório. Não voltei. Queria ver a montagem. O Máximo Barro, generoso como sempre, autorizou a minha presença na montagem. Foi um aprendizado maravilhoso. Levei porrada quando havia erro de continuidade que atrapalhava a montagem de um corte de transição. Nunca me esqueço de um episódio em que o Luigi Picchi estava com um contador Geiger próximo e cortava para ele em suas mãos. Mas estava dando um efeito ruim. O Khouri berrava. Aí o Máximo teve a brilhante idéia de ir procurar a cena, havia sido rodada mais vezes. Nas sobras, tinha uma que cabia certinho. O Khouri reclamou: “Não é a mesma atuação”. “É, mas vai ser essa mesmo”, o Máximo retrucou. Acompanhei a dublagem, a gravação da música – que foi a primeira composição para cinema do Rogério Duprat. A Ilha só foi lançado em 1963. Foi o primeiro sucesso do Khouri, cinco semanas em cartaz. Foi o ano em que o Biáfora me falou do Estadão, para entrar no lugar do Fernando Splinski. Era para ficar provisoriamente um tempinho. Fiquei quatro anos. (risos)

Alfredo41-300x225Z – Foi nessa época que fez o Noite Vazia?

AS – Foi. Em janeiro de 1964. No Estadão, era segundo crítico – o primeiro era o Biáfora -, colaborador, então não tinha horário a cumprir. Só que – Deus o tenha – o Biáfora era muito preguiçoso e em 4 anos eu fiz 872 matérias. Ele fez 6. (risos) Só que era muito exigente e ficava fazendo várias cobranças, e, de vez em quando, dava uns paus. Ele achava o Sergio Hingst o maior ator do mundo e eu não o elogiava na devida altura, vamos dizer assim. O Biáfora brigava comigo, queria mudar – e eu não deixava. Hoje é engraçado, mas era dramático.

Z – E como você conciliou o jornal e Noite Vazia?

AS – Era corrido, mas dei conta. Noite Vazia tinha uma grande vantagem nesse sentido. Era tudo na Vera Cruz e havia algumas externas em horários completamente aleatórios aqui em São Paulo, numa boate à noite, no Largo do Arouche. Ficava com o dia livre. Então conseguia equilibrar com o Estadão. Não me atrapalhou em nada.

Z – Como era trabalhar com o Khouri?

AS – No sentido prático, era muito legal. Quase tudo que sei de cinema, devo a ele. Ele dominava muito bem a linguagem cinematográfica, como pouca gente dominava, e, para mim, essa valorização da linguagem – que valorizo até hoje como crítico e que valorizava como cineasta -, adequação de linguagem e conteúdo, foi bacana. Como pessoa, tinha seus defeitos: era exibido, mulherengo e tal. Tinha uma cultura vastíssima. Tem quem diga que meu cinema foi influenciado pelo do Khouri. Tematicamente, não me considero influenciado. Depois ou durante Noite Vazia, ele se tornou um cineasta muito cerebral, a influência do Antonioni ficou demais. Até então, era algo mais espontâneo, mais aventuresco. Revendo agora A Ilha, é outra coisa. Sou muito grato a ele como professor. A equipe gostava de mim e também me ensinou muito coisa. O Rudolph Icsey, diretor de fotografia, o Máximo na montagem, o Georg Pfister na câmera. Não havia escola de cinema, então foi lá na Vera Cruz que aprendi. O que acho que fiz de errado foi não trabalhar com diversos diretores, por vários motivos.

Z – Você não voltou a trabalhar com o Khouri por quê?

AS – Ele foi fazer O Corpo Ardente, mas estava complicado conciliar com o Estadão. O Biáfora não gostou da idéia. Fiquei meio chateado até. Quando conheci a Barbara Laage, uma musa badalada do existencialismo, só faltou me ajoelhar à sua majestade. Virou uma amigona – um mulherão, linda, simpática, engraçada. Mas não deu para ser assistente, mesmo porque, já queria partir para a prática. Queria fazer o Noturno.

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