Dossiê José Miziara
Entrevista com José Miziara
Parte 1 – Infância, juventude e o começo na área artística
Por Gabriel Carneiro
Fotos: Laisa Beatris
Zingu! – Como foi sua infância?
José Miziara – Maravilhosa. Brinquei de Tarzan em mangueiras, de cipó para cipó, em rio, porque sou de Barretos. Então ia para a fazenda, do meu pai, do meu tio, montava a cavalo – fazia laço, amarrava-o na boca do cavalo e fazia como índio. Ia de bicicleta de uma cidade para outra. Minha infância foi maravilhosa. Acho que ninguém teve uma infância tão boa quanto a minha. Fiz tudo de errado na vida e consegui sobreviver (risos).
Z – Você saiu de Barretos e veio para São Paulo?
JM – Vim, vim. Foi no final de 1951, quando saí do colégio interno em São José dos Batatais, hoje Claretiano, onde passei os anos de 1949, 50 e 51. Meu pai era um jogador de baralho inveterado, não conseguia parar de jeito nenhum. Minha mãe disse: “Não, vamos sair daqui, se não como é que vai ser?”. Aí viemos para São Paulo. Em 1951 chegamos aqui.
Z – Você já gostava de cinema nessa época?
JM – Sempre fui vidrado por cinema. Procurava tudo da área. Eu morava na avenida Angélica, eu e um amigo chamado Carlos, nós assistíamos a todos os filmes que estreavam na semana. Mas já acompanhava desde Barretos. Tinha um médico que era nosso médico de família, o Dr. Conde, que morava em frente à nossa casa, na rua 24, com a 19. Eu era garoto e meu pai só dava dinheiro às quartas e aos domingos para o cinema. Mas havia alguns filmes que passavam nas quintas-feiras e que repetiam na sexta. Eu ia para a porta do cinema e ficava olhando os cartazes. O Dr. Conde era muito amigo do Pedro, gerente do cinema, e de noite ia lá bater papo com o Pedro. E eu ficava com aquela carinha de inocente, olhando o cartaz, de um lado para o outro – para ele poder me ver. Aí ele olhava para mim e dizia: “Zezé, você quer assistir o filme?”. “Quero” (risos). E assim me pagava a entrada do cinema ou, lógico, o Pedro nem cobrava dele, e então assistia filmes a semana inteira. Era vidrado; decorava tudo.
Z – Algum filme nessa época te marcou mais?
JM – Um monte. Por exemplo, a Metro lançou sete filmes que tinham feito – ah, a memória me falha atualmente -, com o Stewart Granger e o Robert Taylor [A Última Caçada], outro com o James Mason. Um a cada dia. Passou no Cine Rio, que era na Consolação e depois virou TV Record – onde pegou fogo. Eu e o Carlos íamos ao cinema e assistíamos a todos os filmes que eram lançados. A gente pegava os lançamentos da Metro, todos os franceses, depois pegávamos no Normandie os outros filmes franceses – eram os primeiros filmes que apareciam peitos, com Martine Carol. Não tinha um filme que não víamos. Íamos no Cine Brodway onde passavam os filmes mexicanos. Quando vinham ao Brasil, lá ia a gente. Eu me enturmei com o Romeu Sanches, que era cunhado do Lima Duarte e operador de som da TV Tupi. Ele freqüentava a mercearia do meu pai, ia beber de tarde. Ele me levava como puxador de cabos dos sons que ele mexia, no Festival de Cinema de 1954, no cine Marrocos, em que vieram aqueles artistas todos. Tinha que fazer careta para entrar, porque era menor de idade, então para poder passar por 18 anos, tinha que fazer careta. Tinha uma porção de artistas americanos.
Z – Você já sabia que queria trabalhar com cinema, atuando?
JM – Claro. Minha vida sempre foi cinema. Se você olhar por aqui, vai ver a quantidade de filmes que têm espalhados. Eu vejo tudo, vou atrás de tudo. Tenho vidração por cinema, passo o dia vendo filme. Não saio de casa, não vou ao restaurante, à boate, a lugar nenhum. Só vou jogar sinuca. Passo o dia assistindo a filmes. Tenho insônia. Então passo a madrugada vendo filme e bebendo vodka.
Z – Quando veio para São Paulo começou a trabalhar nessa área?
JM – Minha carreira é curiosa. Estava no colégio primário Piratininga. Dois grandes amigos meus, Salomão Guzzo e Álvaro Taquerna, resolveram montar uma companhia de teatro. Começamos a ensaiar A Ceia dos Cardeais. Descobrimos que A Ceia dos Cardeais só dava meio espetáculo, e aí resolvemos também fazer As Máscaras, de Menotti Del Picchia. Aliamos as duas. Na primeira, eu era o Cardeal Gonzaga – imagine, um cardeal de 81 anos feito por um garoto de 19 anos, mas, modéstia à parte, dei um show. Primeiro era a ceia dos cardeais com uma maquiagem mais elocubrada e depois as máscaras. No intervalo, entre uma e outra, entrou no meu camarim um senhor que chegou para mim e disse: “Você quer trabalhar profissionalmente? Gostei muito do seu trabalho”. Disse: “Eu quero, essa é a minha carreira, é o que quero seguir.” “Muito prazer, meu nome é Abelardo Pinto. Dá um pulo no Circo Piolin”. Era simplesmente o Aberlado Pinto Piolin, porra!, terceiro maior palhaço do mundo – só perdeu para o Charles Chaplin e para o Otto Griebling, alemão que veio ao Brasil só para conhecer o Piolin porque achava que o Piolin era melhor que ele. Isso eu vi. Aí eu fui trabalhar no circo, era uma peça por semana. “Me dá o script”, pedi. “Não tem script”. “Como não tem script?! Não dão a peça para a gente decorar?”. “Não, quer ver como é?” O ponto sentava aqui, só ele tinha a peça. Dizia: “Entra pela 2”. É aquela marcação antiga de teatro, a 1, a 2, a 3, o procênio, vai para o fundo… Aí comecei a fazer uma peça por semana. Ela começava com 40 minutos, quando estreava na terça, e quando chegava no sábado, já estava com 1h15 – de tanto que as pessoas colocavam caco em cima. Tem uma passagem muita engraçada com o Piolin. Era uma peça em que tinha que roubar algumas cartas de uma atriz portuguesa, que trabalhava lá junto com a gente. Eu tinha que fingir ser noivo dela e o Piolin em cena colocou um caco lá: “Você sabe quantos anos ela tem?” Eu tinha que dizer “Não”, “Não sei”, e ele dizia “30”. Aí eu, babaca, sem experiência, disse “Em cada perna?”. Ao que ele respondeu: “Quem é o palhaço aqui, eu ou você?” (risos). Por que eu tinha que dizer: “30?!”, repetir, e ele dizia “Em cada perna”. Foi uma tremenda escola. O engraçado é que eu fazia o circo Piolin e ia para o MAM onde tinha como professores o Adolfo Celi, Ruggero Jacobbi, Carla Tivelli, que foi minha grande madrinha, João Ernesto Coelho Neto. Era muito engraçado, porque às 6h da tarde, eu fazia O Mercado de Veneza, Racine, Romeu e Julieta e ia para o circo fazer comédia, às 9h da noite. Duas escolas muito paralelas. Depois fui para a companhia do João Paulo Cantuária, onde fiz Romeu e Julieta e Sonhos de uma Noite de Verão. Imagina eu misturando Shakespeare e as palhaçadas lá do circo. Larguei o circo, fiquei só com o teatro, aí fui para a companhia do Sérgio Cardoso – nos anos 1950, quando estreou o teatro Bela Vista (hoje Sérgio Cardoso). Fiz o Hamlet aqui em São Paulo, depois no Rio, em Santos.
Z – E quando ingressou na televisão?
JM – Fui ao Demerval Costa Lima vender um programa de circo. Ele então me perguntou: “você não quer ser ator?” e me mandou para o Paulo de Grammont. Fui contratado, porque o [Walter] Avancini tinha sido mandado embora. O Demerval não recebia as pessoas na sala dele, e sim no botequim, aonde era a TV Paulista, na Rua da Consolação. Ele me dava a maior força, acreditava em mim – era um negócio impressionante. Quando foi convidado para dirigir a TV Continental, que ia ser inaugurada no Rio, ele me chamou. “Miziara, vou dirigir a TV Continental, que vai ser inaugurada. Quer ir para o Rio?” Garoto é besta. “Depende”, respondi. Dizer para um cara desses, que era o maior diretor artístico que tinha na TV brasileira, “depende”?! “Depende do quê?” “Quanto eu vou ganhar lá?” Eu ganhava 8 mil na TV Paulista, para ser rádio-ator e teleator. Ele disse: “25”. Eu me segurei na cadeira, pedi mais uma vodka e perguntei: “25 quanto?” “25 mil”. Eu estava noivo da filha do Piolin, a Ana Ariel, essa que foi atriz da Globo – antes era Ariel Miziara, maior mulher que já conheci na vida. Respondi para o Demerval: “25 mil eu aceito, mas preciso levar minha mulher.” “Ela é atriz?” “É, e muito boa, filha do Piolin”. No que disse isso, cresceu a imagem para ele. “Quanto você quer para ela?” “12.” Ele disse: “Fechado”. Me deu uma dor de barriga, deus do céu. 25 mil mais 12. Saí correndo dali, fui ao circo (na General Olímpio da Silveira), onde ela tinha uma casa lá de madeira. Bati lá: “Nós vamos para o Rio de Janeiro”. “Quê?” “Nós vamos para o Rio de Janeiro”. Eu vou ganhar 25 mil e você 12 mil, e você vai ser atriz também da TV Continental. Ela disse: “Vem cá, você bebeu muito?” “Não, só o normal, porra.” “Mas isso é verdade? Faz o seguinte. Volta amanhã de manhã e me repete essa história.” Repeti para ela, e lá fomos nós para o Rio de Janeiro. Antes de ir, peguei toda a minha indenização. O porra do Walter Forster, que era o diretor da televisão, quase estrepa a minha vida. Quando fui pedir demissão, ele disse: “não, você é o mais promissor galã da televisão.” Implorei: “pelo amor de deus, ganho 8 aqui; vou ganhar 25. Serei diretor lá.”Aí me deixaram ir. Eu fui com o Zé Oscar ao aeroporto e nunca tinha pego um avião. Chamei-o para ir dar um tempo lá no bar. Bebemos os dois um litro de whisky. Entrei no avião e fiquei: “Puta merda, e se esse avião cai? Agora que a minha vida está tão boa…” (risos) Tinha uma tia que morava na Rua das Laranjeiras, edifício Zacatecas, com quem minha mãe tinha falado pelo telefone, vendo se podia me hospedar lá até eu arranjar um apartamento. Cheguei na TV e aquela festa tremenda de inauguração da TV Continental, tudo lotado, com o deputado Rubens Berardo, dono da televisão, e os irmãos dele. Ao entrar, já me perguntaram: “Aonde você vai?” Expliquei que era contratado e que queria falar com o Demerval Costa Lima. Na portaria, aqueles jagunços não queriam me deixar passar. O Demerval, então, coloca a mão no meu ombro e entra no meio daquele bolo de gente comigo, e diz: “Este é o meu astro”. (risos) A dor de barriga que deu… E vai dizendo que vai ser o diretor de teledramaturgia, que vai dirigir o teatro. Na porta, havia encontrado dois amigos meus que eram aqui de São Paulo, o Roberto Mayer e James Dean – pois era a cara do ator americano; quando o James Dean morreu, foi até para a Argentina. Era um nortista semi-analfabeto que só servia para a direção de estúdio – mas era um tremendo amigo. Fiz o TeleDrama na Continental, que foi um sucesso tremendo. A única estação de televisão que estreou em primeiro lugar foi a TV Continental do Rio de Janeiro, pois investiram em teledramaturgia, de segunda a domingo. Aí é aquele negócio: vem a falência, você fica desempregado, começa a procurar emprego. Fui à Tupi: “quando chegar o script, se tiver um papel masculino, é seu!” Esse cara é amigo, o João Loredo, que era da Tupi. Começou um vai-e-vem que não acabava mais.
Z – Foi nessa época que você fez sua primeira participação no cinema, em Cacareco Vem Aí?
JM – É, do filho da puta do Carlos Manga. Eu era o maior sucesso do Rio de Janeiro em termos de televisão. O Manga ia fazer esse filme, que se chamava, à época, Duas Histórias. Ele manda o Cyl Farney, que era produtor do filme, me convidar. O Cyl Farney chega lá – cara maravilhoso, educadíssimo – e me oferece mil por dia e vinte dias de filmagem. Aceitei. Ganhava 25 e ia ganhar mais 20. Eu fiz Actor’s Studio por correspondência, era um astro. Fui para uma reunião com o Manga, que contou qual era o papel: o de um rebelde sem causa. “E o script?”, perguntei. “Cinema não tem script!” O Manga é o rei da reunião, ninguém bate ele em uma. E me desenhou o papel do James Dean. No primeiro dia de filmagem, fiquei por lá, sem fala. No segundo dia, a mesma coisa. O bacana foi que conheci o Oscarito, o Grande Otelo, a Eliana, pessoas maravilhosas. Aí chega no dia da filmagem da cena do cassino, em que tenho uma fala (“Devolve o baralho para o moço.”), e tem uma briga com o Cyl Farney, que mete um telefone no ouvido. A cena foi repetida vinte vezes. Vai passando e chega um dia de filmagem e o Manga diz: “Todo mundo vestido de mulher”. “Como assim?” Conclusão: era um figurante de luxo dentro do filme, simplesmente. O filme, que se chamava Duas Histórias, era sério. Teve uma eleição aqui em São Paulo e a pessoa mais votada foi o Cacareco. O Severiano Ribeiro ligou para o estúdio e mandou mudar o título, que deveria ter Cacareco. Mudaram para Cacareco Vem Aí. Fizeram uma bicicleta para o Oscarito, do tipo de tintureira. Cresceu o papel da Sonia Mamede, do Oscarito e o pessoal da linha séria, como o Cyl Farney, foi tudo para a cucuia. Ainda bem que pagaram os vinte mil. Tenho uma profunda bronca com o Manga, por duas vezes. Por essa e por outra. Eu frequentava um clube chamado Pontal e tinha um amigo com quem ia lá. Esse meu amigo queria falar com um sujeito, num teatro que era a caminho do clube. O Manga estava lá. “Miziara, aonde você anda? Porra, Miziara!” Como não estava trabalhando, me chamou para ir para a Excelsior. Era final de semana e havia me pedido que passasse lá na segunda-feira. Cheguei lá e estava passando o programa Cidade se Diverte, que eu havia criado em São Paulo e agora estava no Rio de Janeiro, com apresentação do Milton Franco. O Manga me instruiu então a vestir um smoking, que tinha lá no guarda-roupa. Entraria no final. “E você vai entrar junto com ele”, disse. Olhei para o lado e era o Alain Delon – o verdadeiro. No final do programa, o elenco inteiro, em fila, dos dois lados, e anunciam Alain Delon e José Miziara. Fiquei pensando comigo: “Deve ter alguma coisa errada, não é possível, não bebo tanto”. Entramos os dois, eu e o Alain Delon. Acabou, devolvi o smoking, coloquei minha roupa e perguntei: aonde assino o contrato? Lá na sede, na Venezuela. Fui então, na terça-feira, para a Venezuela. Pedi para falar com o Manga: “Não, Miziara, acho que você entendeu mal”. E me descartaram. Isso foi em 1965. Em 1963, havia voltado para São Paulo por conta da Excelsior, depois fui dirigir a TV Rio, depois veio o Boni.