Especial Futebol no Cinema Brasileiro
Linha de Passe
Direção: Walter Salles & Daniela Thomas
Brasil, 2008.
Por Filipe Chamy
Em Linha de passe, uma idéia já no início dá o tom do filme: a contraposição de um culto e de um jogo de futebol. Ao longo do filme, esses elementos se misturam, outros são adicionados e as dosagens se alteram, não permitindo separação entre os eventos: o esporte vira uma religião quando o espectador sofre realmente com as partidas, e a religião vira um esporte quando o fiel quer reverter o placar de sua existência.
Mas não é só de bola e igreja que vivem os personagens de Linha de passe, vivem problemas cotidianos de todo tipo, como falta de afeto, complicações românticas, dúvidas até existencialistas. A modéstia financeira não impede a complexidade dos dramas, e por isso o filme de Walter Salles e Daniella Thomas consegue se destacar mais que seus colegas de tema (essa “exploração da miséria” tão comum no cinema brasileiro), porque não se apóia em arquétipos morais para estruturar as ações de seus personagens: todos podem errar ou acertar, pobres ou ricos, e ninguém é inteiramente bom ou ruim — assim como um jogo de futebol, em Linha de passe só tomamos conhecimento do resultado de tudo ao final do segundo tempo, e, mesmo assim, não podemos ficar certos de sua justiça; mas é só um jogo, não?
O filme é dividido em pequenos núcleos que basicamente testemunham os acontecimentos recentes na vida dos rebentos de uma empregada doméstica, grávida mais uma vez. Cada criança ou jovem tem suas preocupações e necessidades, e apesar de filmes episódicos padecerem habitualmente de uma irregularidade que impede um bom acabamento da obra como unidade, Linha de passe acerta justamente ao dividir essas histórias, que são ligadas naturalmente, porque não é honesto tratar uma família tão heterogênea como um só ser pensante, como se todos tivessem os mesmos interesses e obstáculos. Na verdade, Linha de passe é futebolístico até nesse tratamento: o técnico (o casal cineasta) não poderia querer que só um jogador (ator) tocasse na bola (o próprio filme), como é bem lembrado por um personagem no começo da fita.
Mas se Linha de passe não é uma partida vergonhosa, tampouco será lembrado como um jogo memorável, pois suas virtudes esgotam-se quase que inteiramente na sinceridade dos intérpretes, mas seus defeitos começam quando o filme é embalado como um produto artesanal, como quem espiona à distância um animal na floresta e diz, passando o binóculo a um amigo: “veja só que espécime curioso!”. Então acabam fracassando os esforços na tentativa de dar dimensão a certos tropeços dos personagens, pois o espírito que paira é sempre o do observador acostumado com a falta de perspectiva de quem é diferente dele. Por exemplo, quando certo personagem se envolve com o crime, o olhar condescendente parece ainda mais cínico do que seria se fosse um olhar de reprovação. Parece que vem embutido um comentário: “ele se voltou para a marginalidade, mas vivendo naquelas condições ele não tinha mesmo outra opção”. Fica um fantasma de conformismo, quando o que se quer fingir que se diz é justamente o contrário; aí o filme deixa de ser humanista e se torna uma narrativa algo descontrolada, pois quer afirmar o que a imagem do cinema nega.
De qualquer modo, Linha de passe é bem filmado e não compromete as intenções “bom mocísticas” com que foi elaborado. É um filme bem superior ao que o “bom gosto” cinematográfico brasileiro vem legando, e nesse sentido é um pouco como a mãe interpretada por Sandra Corveloni: pode negligenciar um pouco seus filhos (ou os espectadores), mas não nega suas boas intenções, e, assim como ela, tem consciência de que não age corretamente às vezes, seja fumando na gestação (a mãe), seja acusando o público de um problema social de que se afasta (o filme) — às vezes a partida é injusta mesmo.