São Paulo S.A.

Especial Luís Sérgio Person

São Paulo S.A.
Direção: Luis Sérgio Person
Brasil, 1965.

Por Marcelo Miranda, especialmente para a Zingu!*

A fragmentação é a base de São Paulo S.A. Logo em seu primeiro filme, lançado em 1965, Luís Sérgio Person quebrou toda e qualquer noção de continuidade clássica e fez um filme de linguagem ainda hoje muito moderna, cheia de elipses, mudanças de foco, desnarratividade e montagem verticalizada sob todo e qualquer aspecto. É impossível ordenar São Paulo S.A., assim como é impossível deixar de compreender suas questões por causa disso. Na verdade, o que o torna um grande trabalho é essencialmente o fato dele se fixar na noção de fragmento e levá-la até o fim.
Trata-se de um filme sobre um homem despedaçado, vivendo numa cidade despedaçada e nunca se esforçando para sair da condição de despedaçado. Carlos (Walmor Chagas, também estreando no cinema) é um rapaz brutalizado por um qualquer-coisa nunca necessariamente explicitado pelo filme, mas sente-se na ambientação o que o angustia. Ele jamais busca soluções para a própria vida – muito pelo contrário: mergulha mais e mais nas fissões que a vida vai lhe impondo, até o ápice de, para tentar sobreviver, ele se obrigar a recomeçar (o mote do filme é este: “recomeçar, começar de novo”). Person coloca esse personagem em contato com um mundo que parece negá-lo a todo instante, justamente porque ele nega o que este mundo lhe propicia. Trabalho? Carlos começa numa fábrica (por motivos menos de paixão do que de oportunismo), depois se muda para a empresa do amigo. Vida social? Não parece ter. Mulheres? As que surgem pelo caminho e que se submetam à sua postura machista e magnânima. Casamento? É a conveniência ideal a quem ambiciona ter um mínimo status dentro de uma sociedade cuja sensibilidade aparenta ter atingido a falência dos valores morais. Tudo são fragmentos.

São Paulo S.A. se situa cronologicamente dentro do movimento do Cinema Novo, mas se vincula menos a ele do que a produções europeias daquele mesmo momento histórico – ainda que o próprio Cinema Novo já seja, por si só, devedor a manifestações de fora. Porém, São Paulo S.A. não tem o comprometimento com a “representação do povo” e a “estética da fome” capitaneado por Glauber Rocha. O filme de Person é até formalmente controlado, no sentido de que sua direção de fotografia (Ricardo Aranovich) busca sempre o enquadramento mais próximo dos sentimentos de Carlos, e não especificamente o quadro “possível” que caracteriza o Cinema Novo. Person (e sua fragmentação) está mais próximo do Alain Resnais de Hiroshima Mon Amour (1959) e O Ano Passado em Marienbad (1961) do que do Glauber de Deus de Diabo na Terra do Sol (1964) – assim como a inserção do ambiente real da filmagem “invadindo” a dramaturgia e se tornando parte essencial dela é mais ligada ao Roberto Rossellini de Stromboli (1949) e Viagem à Itália (1954) do que ao Nelson Pereira de Rio 40 Graus (1955).

É também um filme raro por focar as lentes na classe média brasileira – até hoje um grupo social tabu no nosso cinema. As figuras que circulam no centro da ação do longa buscam enriquecer e viver bem, e para isso estudam, trabalham, casam-se, têm filhos, associam-se, acumulam dinheiro. Ou então usam suas qualidades como escada carreirista, como se dá com Luciana (Darlene Glória, outra estreante), modelo que não se contenta em apenas ser bonita e viver disso: ela também quer receber a atenção daquele que melhor possa lhe dar uma vida considerada, por ela, digna.

Esses personagens esbarram no preço cobrado por um cotidiano cuja essência é o mercantilismo. Não que São Paulo S.A. seja propriamente crítico ao mercantilismo. Talvez ele esteja próximo de uma reflexão pessimista desse processo de ascensão social tão buscado pelo micro-universo de pessoas retratadas no filme. Carlos se fragmenta por não dar conta das pressões advindas dessa busca e destrói consigo tudo ao redor e tudo pelo que, afinal, ele estaria batalhando. A cena inicial do filme é emblemática: vemos Carlos e a esposa (Eva Wilma) em meio a uma discussão violenta, mas não temos acesso ao que eles falam, pois há uma janela de vidro entre a sala e o registro imagético da sala. É a imagem-ícone da derrocada da classe média que o filme tenta captar: mesmo criando autobarreiras, tal grupo social é incapaz de prender-se a si mesmo ou se isolar dos problemas do mundo. O mundo (a câmera do lado de fora da janela, querendo entrar) vai até ele.

A cidade de São Paulo é seminal na forma como Person molda o filme. As ruas, os corpos e rostos anônimos, a arquitetura, a luminosidade diurna e noturna, tudo existe única e exclusivamente a partir do que a metrópole oferece às imagens captadas pelo diretor. O nome São Paulo S.A., para além do óbvio, representa a ideia de Person de um lugar quase burocraticamente registrado como uma grande empresa, na qual trabalham mecanismos automáticos e autônomos de vivência e sobrevivência.

Carlos é a figura escolhida pela narrativa do filme, mas ele não se difere de tantas outras pessoas com quem esbarra ao longo de seu mergulho nas aflições internas provocadas pela metrópole. É um dado curioso, este: Person jamais problematiza a cidade como sendo uma questão para os personagens. No melhor da modernidade concebida pelo filme, ele transforma a ambientação num elemento particular, presente como dado concreto, sem a necessidade de que ela surja em algum diálogo ou off, nem mesmo nas pirações mais profundas do protagonista. Basta que a câmera se encarregue de colocar Carlos inserido num lugar dentro do tempo e do espaço, e o filme naturalmente define o restante através da própria força daquilo que apresenta (e representa).

Mais ainda que Carlos, há outra personagem significativa do sufocamento proposto pelo filme. Trata-se de Hilda (Ana Esmeralda), uma das mulheres que passam pela vida do protagonista. Ela surge – como quase tudo em cena – pulverizada, indo e vindo dentro das memórias de Carlos. A certa altura, numa visita eventual, ele a encontra morta. Suicídio. Hilda é a única personagem do filme com ambições para além do acúmulo de capital ou prestígio. Intelectual, inteirada, informada, ela tenta driblar as “cobranças” da cidade, mas não é bem-sucedida e decide por si mesma se livrar do enfado. É uma atitude da qual Carlos jamais teria coragem, o que não o impede de lamentar a decisão da moça e reconhecer nela um olhar diferenciado para tudo que a cercava – e que também o cerca.

Após São Paulo S.A., Person seguiu atrás de visões distintas para um tipo de brasilidade muito característica de seus filmes. Sem um projeto específico de cinema, ele escolhia a dedo o que lhe convinha, adequando suas escolhas formais de acordo com o que optava por mostrar. Daí que ver ou rever a curtíssima carreira de Person é um exercício de surpresa constante. Seu filme seguinte, O Caso dos Irmãos Naves, sai da metrópole paulistana e mergulha no interior de Minas Gerais para radiografar (com o máximo de veracidade possível, através de uma narrativa clássica e de tensão crescente, algo esteticamente aos moldes de O Homem Errado, de Alfred Hitchcock, e politicamente como os italianos Elio Petri e Giuliano Montaldo) o caso real de dois irmãos presos injustamente por assassinato – o que lhe permite falar de ditadura e tortura sem fazer discurso gratuito. Depois, Person dialoga com o cinema de gênero, especificamente o western (Panca de Valente) e o horror (Trilogia do Terror, no qual dirige o episódio A Procissão dos Mortos – dividindo o filme com eles, estão Ozualdo Candeias e José Mojica Marins). Finaliza a carreira com um grande deboche à chanchada dos anos 40, antecipando a pornochanchada dos anos 70 e 80, em Cassy Jones – O Magnífico Sedutor.

*Marcelo Miranda é repórter de cultura no jornal O Tempo (Belo Horizonte-MG) e crítico da revista eletrônica Filmes Polvo.