Dossiê Vera Cruz
Sai da Frente
Direção: Abílio Pereira de Almeida
Brasil, 1952.
Por Vlademir Lazo Correa
Paulo Emilio Salles Gomes costumava dizer que o melhor dos filmes de Mazzaropi era ele próprio. O célebre crítico ressaltava ainda a verdade contida nos lugares-comuns do universo particular da obra do comediante, explicando que ao não querer aprofundar propriamente nada em seus filmes, Mazzaropi conserva a autenticidade e pureza neles existentes, complementando que “os lugares-comuns se acumulam tanto que o terreno acaba cedendo e como muitas descobertas ao acaso de desbarrancamentos, de repente desponta dessas fitas incríveis uma inesperada poesia“. Por não ser pretensioso em momento algum, Mazzaropi recria um mundo. O seu mundo, o dos seus pares, dos caipiras, um universo regional, o que também vai de encontro a um outro conceito lapidar de Paulo Emilio, que dizia que a familiaridade de um autêntico filme nacional pode ser mais interessante do que qualquer filme estrangeiro, numa definição que desde àquela época tem sido muito deturpada e mal-interpretada.
Por outro lado, é praticamente impossível enxergar Sai da Frente, o primeiro trabalho para o cinema de Amácio Mazzaropi, no mesmo contexto de quando foi lançado no começo da década de cinqüenta. Se hoje em dia ele é apenas mais um entre tantos filmes de Mazzaropi, na época de estréia foi a película que salvou momentaneamente a Vera Cruz do vermelho. Apesar do bom padrão dos filmes da companhia, o mau relacionamento entre os brasileiros e os técnicos e diretores vindos da Europa, a falta de conhecimento quanto à distribuição e exibição e os gastos enormes de produção ameaçavam levar a Vera Cruz à ruína financeira. Abílio Pereira de Almeida, autor, produtor, ator e diretor teatral brasileiro (um dos fundadores do TBC e que vinha participando como ator desde os primeiros filmes da Vera Cruz), começa a ganhar mais espaço no estúdio e, após dirigir Ângela, aproveita uma idéia de Tom Payne sobre um caipira que se defronta com a metrópole e ambos encontram Mazzaropi (até então artista de rádio, circo e teatro) e o convidam para estrelar Sai da Frente.
O filme começa com dois amigos bêbados surgindo em cena numa manhã bem cedo, visivelmente vindos de uma noitada de farras e com uma garrafa de uísque em mãos. Ao cruzarem por uma casa com um vidro de leite à beira da porta, trocam por brincadeira o uísque pelo leite, e logo descobrimos tratar-se da residência de Isidoro Colepícula (Mazzaropi), que acorda com o barulho do despertador e ao recolher a garrafa na porta, incrédulo, reclama para a esposa que, além de viverem colocando água no leite, agora os leiteiros botam uísque.
Isidoro é dono de um caminhão de frete, Anastácio, uma viatura que funciona como um personagem e quase que com vida própria, na tradição de outros veículos como a locomotiva ou o Volkswagen de comédias clássicas e tão díspares entre si como A General e Se Meu Fusca Falasse, respectivamente. Uma geringonça velha que funciona a duras penas e faz muito barulho quando ligada (despertando do sono e enfurecendo os vizinhos de Isidoro), e que parece estar prestes a desmoronar a qualquer hora enquanto anda pelas ruas, precisando vez por outra amarrar seu caminhão em outro e pegar uma carona. Vale destacar também o cão que acompanha o caipira, o Coroné, interpretado por Duque, um pastor alemão treinado que ficou famoso.
Na fila de caminhoneiros que aguardam uma solicitação de carga, Isidoro é contratado por Eufrásio para uma mudança, contra a vontade do próprio velhinho, que preferia pegar o serviço de outro caminhão, mas deve obedecer a sequência da fila. O transporte é para uma mudança de mobília de São Paulo até Santos, com os móveis colocados sobre o caminhão, que parte meio desgovernado. As cenas no caminhão geram confusões no trânsito ao longo do filme, com correrias, batidas, congestionamentos, buzinadas e insultos, fazendo jus as palavras de Isidoro, que diz “aqui no volante, quem grita primeiro é que tem razão” . Ao parar em um posto de gasolina para satisfazer as “necessidades”, esquece de deixar o caminhão freado, que desce a serra sozinho até desaparecer, com a mobília da mudança e tudo. O caipira tem de sair procurando-o pelas ruas de São Paulo, e confunde-se com informações desencontradas, e ao se dirigir para a delegacia, mal consegue explicar a que veio, com cada funcionário indicando-o para uma repartição diferente, tendo que ajudar o porteiro a preencher palavras cruzadas, não conseguindo subir pelo elevador, desentendendo-se com o juiz, sendo atendido até mesmo em uma seção para menores abandonados e desaparecidos.
Um dos melhores momentos de Sai da Frente é quando Isidoro sai no encalço de um vigarista (que o vendera um bilhete de loteria fajuto e tentara roubar Coroné) e o persegue até o acampamento de um circo, sequência repleta de surpresas e achados visuais por inserir uma dinâmica circense em meio às tantas figuras e as particularidades do local (trapézio, corda bamba, alguns números de mágica e o confronto de Isidoro com Sansão, o homem-forte). Ou o rápido discurso de um político demagogo que aproveita uma multidão que se forma em torno de um tumulto, e que conclui a sua arenga dizendo “ruim por ruim, votem em mim” . Outro destaque é quando, ao desmaiar após uma briga de bar envolvendo dezenas de pessoas, Isidoro sonha estar vestido de Sansão dançando com a sua sensual messalina, numa cena de certa beleza plástica que para o protagonista se encerra como um pesadelo bem-humorado.
O final reserva a Mazzaropi o seu único número musical em Sai da Frente. Com o sucesso bastante considerável, no mesmo ano a Vera Cruz rodou as pressas uma continuação (o igualmente bom Nadando em Dinheiro) e enfim conseguiu fazer frente à Atlântida nas bilheterias, revelando um comediante com tanto ou mais apelo popular quanto Oscarito, o astro do estúdio carioca. Quanto a Mazzaropi, sabendo da mina de ouro que ele próprio era, anos depois fundou a sua própria produtora, realizando filmes apenas seus, e enriquecendo com uma série de trabalhos que durante um bom tempo carregavam certa qualidade, até despencar com filmes cada vez mais sofríveis e pobres de criatividade.