Dossiê Vera Cruz
Na Senda do Crime
Direção: Flamínio Bollini Cerri
Brasil, 1954.
Por Daniel Salomão Roque, especialmente para a Zingu!*
O ato de comentar Na Senda do Crime passa, quase obrigatoriamente, pela análise constante de seu cunho atípico. Lançado em março de 1954, no apogeu da crise financeira que assolou a Vera Cruz, o filme é imbuído de uma discordância que não se manifesta apenas no âmbito de estilo que caracterizava a companhia em questão, mas também na própria cinematografia brasileira como um todo. É um raro (e autêntico) exemplar de film noir brasileiro, rodado numa época em que fitas do tipo ainda proliferavam nos EUA, sendo anterior a A Morte num Beijo, Império do Crime (ambos de 1955) e A Marca da Maldade (1958), só para mencionar três pilares fundamentais do gênero; ao mesmo tempo, o universo hard-boiled onde se situa a obra e os desdobramentos do mesmo sobre a narrativa fazem do filme uma espécie de corpo estranho em meio às produções da Vera Cruz, sabidamente afeita ao melodrama, ao regionalismo histórico e à comédia de costumes.
De que forma explicar tamanha discrepância? Uma observação atenta da obra nos fornece algumas pistas: ao longo de seus 65 minutos, Na Senda do Crime escancara sem dó nem piedade sua força motora – a montagem. É ela, principalmente, que conduz o olhar e as sensações dos espectadores através dos fotogramas, muito mais do que o possível carisma do elenco, o texto dito pelos atores, a complexidade dos personagens ou mesmo as evidentes qualidades de sua direção. O filme é assinado pelo italiano Flaminio Bollini Cerri, um dos mais importantes encenadores do TBC e ex-assistente de Luchino Visconti, em sua única incursão cinematográfica; contudo, seu verdadeiro autor parece ser o montador iugoslavo Oswald Hafenrichter (indicado ao Oscar pelo seu trabalho no clássico O Terceiro Homem), cujos métodos são assim descritos por Anselmo Duarte, num esclarecedor depoimento fornecido à pesquisadora Maria Rita Galvão e reproduzido no livro História do Cinema Brasileiro (org. Fernão Ramos):
“…tomadas curtas e rápidas, montagem viva. Ora, isto por sua vez implica a necessidade de um diretor que saiba filmar de acordo com esse estilo, implica tarimba para saber prever de antemão o resultado das tomadas depois de montadas. E os nossos diretores estreantes não sabiam filmar de acordo com um estilo em que a pedra de toque era a montagem (…) Para os (nossos) diretores a tela era um palco achatado (…) Hafenrichter cortava tudo o que achava que devia cortar e jogava fora. O caso típico, o exemplo-limite, (…) foi ‘Luz Apagada’. A equipe partiu para Angra dos Reis, filmou tudo o que havia para filmar, e voltou com o filme pronto. Então Hafenrichter foi montar; cortou, cortou, cortou, cortou, cortou tanto que quando o filme ficou pronto estava com metade do tempo de projeção.”
Isso talvez jogue alguma luz sobre o teor telegráfico do filme em questão. Na Senda do Crime é, para falar a verdade, um média-metragem, e a urgência que o caracteriza vai muito além da duração. Ao narrar as desventuras de um bancário que, após ter sua agência roubada, associa-se aos ladrões (algo por si só bastante febril), a fita desfila uma sucessão de cortes secos e situações abruptas: é mais ou menos como se o próprio filme estivesse contagiado pela impaciência do protagonista, sempre às voltas com as conseqüências de seus atos não tão bem-planejados, e declarasse ao espectador que não há muito tempo a se perder com digressões, silêncios e planos longos. Tais escolhas transparecem de maneira bastante competente em duas belíssimas cenas: a do assalto ao cinema, em que a ação dos bandidos se confunde com a da película policial hollywoodiana projetada no estabelecimento, e a fuga final, que culmina num cerco a um prédio interditado e se conclui do modo mais violento possível. Só o que parece interessar, aqui, é o realismo – não o realismo propriamente dito, mas aquele forjado pelas lentes cinematográficas americanas, repleto de becos escuros e boates mal-frequentadas, de mulheres ora devassas, ora angelicais, envoltas por uma constante fumaça de cigarro e cercadas por homens invariavelmente bêbados, armados e bem vestidos. Sorte nossa, azar dos personagens.
*Daniel Salomão Roque é fanático por quadrinhos e cinema. Colaborou fixamente com a Zingu! por 15 edições, das quais 12 com a coluna Tesouro dos Quadrinhos.