Ângela

Dossiê Vera Cruz

Ângela
Direção: Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida
Brasil, 1951.

Por Daniel Salomão Roque, especialmente para a Zingu!*

Ângela, terceiro longa-metragem da Vera Cruz, sucessor de Caiçara e de Terra é Sempre Terra, foi lançado em 1951 e alimentou uma série de controvérsias que já naquele tempo rodeavam a companhia, referentes sobretudo à adoção de um certo modelo cinematográfico e à maneira como este retratava uma suposta identidade cultural brasileira. O filme centrava-se em figurões da burguesia, preocupados com posses e prestígio social, e nos viciados em jogatina, atividade aqui mostrada como um risco potencial à estabilidade do núcleo familiar: Gervásio (Abílio Pereira de Almeida) é um legítimo representante do segundo grupo e perde numa aposta a mansão onde vivia com a recém-falecida esposa, sua enteada Ângela (Eliane Lage) e a avó da garota, sendo as três pertencentes ao primeiro círculo; Dinarte (Alberto Ruschel), por sua vez, é o jogador sortudo que, ao vencer Gervásio e abocanhar sua última propriedade, apaixona-se pela personagem-título e passa a atuar como um elo entre esses dois mundos.

Ângela é romântico e conservador; não por se tratar de uma história amorosa, ou por denunciar de forma moralista os perigos do vício, mas por ser deliberadamente folhetinesco e anacrônico de nascença. A fita está muito mais próxima da literatura feita no século XIX que do cinema propriamente dito, e suas soluções visuais esbarram na teatralidade óbvia, com o único (e evidente) objetivo de ressaltar o carisma do elenco junto às platéias, no que se torna de uma redundância irritante. Por meio de um enredo similar às mais enfadonhas páginas de escritores como Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar, seus personagens enfrentam o fantasma da decadência, sucumbem à nostalgia, vivenciam paixões, amargam tristezas, enroscam-se em teias amorosas, deixam-se seduzir pela auto-destruição e tentam, sem muito sucesso, resistir às suas tentações particulares.

Cada fotograma é encharcado de sentimentalismo, o que não chega a ser um problema quando a obra dá ao espectador a liberdade de sentir o que bem entende pelas situações e pessoas que lhe são apresentados. Em definitivo, não é o caso aqui. O drama, o amor e a tensão parecem meros artifícios para a câmera chegar junto ao rosto das estrelas e escancarar seus sorrisos e lágrimas, inevitavelmente acompanhados por gestos, diálogos e composições musicais que servem apenas para sublinhar, de forma quase pornográfica, o tipo de emoção que se deseja extrair do público. Esse procedimento está presente desde a abertura, em que violinos histéricos introduzem uma tentativa de suicídio, até a cena final, na qual o casal de protagonistas se reconcilia ao som de uma trilha comovente, com direito a gritos, abraços e close-ups açucarados, passando também pelos ditos momentos “leves”, marcados pelos papéis caricatos de Ruth de Souza e Inezita Barroso e pela profusão de festinhas regadas a chá.

Como se não bastasse, há no filme um refinamento postiço e um senso equivocado de grandiosidade, que se traduzem em longas e desnecessárias tomadas de paisagens naturais, monumentos públicos, cassinos e mansões – muito eficientes para esfregar o orçamento polpudo em nossa cara, mas de efeito nulo em qualquer outra função. A personagem da velha que recita versos de Alexandre Herculano para as visitas em sua cadeira de balanço é bem simbólica dessa estética, na qual o próprio cinema é desprezado, tido como veículo de luxo para outras mídias mais “dignas” (o teatro, a literatura, etc) e onde a cultura deixa de ser uma ferramenta de crescimento pessoal para se tornar um adorno a ser ostentado, um fim em si mesmo.

Não deixa de ser interessante que as questões políticas e ideológicas sejam tão recorrentes nas discussões acerca da Vera Cruz, chegando por vezes a encobrir todos os outros aspectos inerentes a ela; não raro, tanto defensores quanto detratores terminam por adotar uma visão simplista dessa filmografia, atribuindo-lhe a pecha de “cinema de qualidade” ou, no outro extremo, de lixo escapista. Ambas as partes parecem ignorar as nuances desse território e as disparidades existentes entre as próprias produções da companhia; de fato, o histrionismo antiquado de Ângela parece confirmar todas as hipérboles negativas já escritas sobre a Vera Cruz, mas não devemos nos precipitar: a linguagem cinematográfica tradicional foi melhor desenvolvida em outros de seus filmes.

*Daniel Salomão Roque é fanático por quadrinhos e cinema. Colaborou fixamente com a Zingu! por 15 edições, das quais 12 com a coluna Tesouro dos Quadrinhos.