Appassionata

Dossiê Vera Cruz

Appassionata
Direção: Fernando de Barros
Brasil, 1952.

Por Pedro Ribaneto, especialmente para a Zingu!*

Egocentrismo é a palavra que define os personagens da trama que envolve Appassionata. A sétima produção da Vera Cruz lançada comercialmente marca o ápice das produções dos estúdios de São Bernardo do Campo, considerando o requinte da direção de arte, o roteiro audacioso que inclui viagens pelo mundo, cenas no litoral e grandes apresentações no Teatro Municipal, além do grande elenco recheado de estrelas.

Sílvia Nogalis é a protagonista interpretada por Tônia Carrero, que, nesse filme dirigido por Fernando de Barros, está deslumbrantemente bela. Sílvia é uma renomada pianista que em uma grande noite de apresentação no Teatro Municipal descobre que seu marido, o grande maestro Hauser, está morto. A morte misteriosa do marido traz à tona, através de flashbacks, o relacionamento conturbado que viveu o casal de músicos – e que admite um caráter ambíguo. É evidente que uma paixão entre o maestro e a aprendiz os conduziu ao casamento, no entanto, é notável que a união se concretizou em maior escala pela devoção de ambos para a música, em que Hauser deposita na jovem Sílvia suas heranças artísticas, e a pianista absorve o talento e a fama do marido para consolidar sua arte. De qualquer maneira, o clima se torna policial quando uma governanta acusa Sílvia da morte do maestro, e a mídia sensacionalista polemiza o fato ameaçando sua carreira.

O que leva Sílvia a se retirar para uma casa na praia é sem dúvida a ameaça que se forma sobre sua carreira artística, e nesse processo de reclusão ela conhece Pedro (Anselmo Duarte), diretor de um reformatório para jovens infratores que se apaixona por ela. A relação não se desenvolve e a pianista aceita um convite para uma turnê pela Europa, onde conhece o pintor Luis Marcos (Alberto Ruschel), que se encanta por sua beleza descomunal e a retrata num quadro. Os dois se casam e voltam para o Brasil.

No grande momento do filme, a personagem de Tônia Carrero novamente se apresenta no Teatro Municipal, determinando de vez seu valor como pianista executando Appassionata, de Beethoven. O grande mistério ao redor da morte de Hauser é enfim desvendado, e Sílvia se priva do amor de dois homens para seguir seu caminho apenas ao lado da música.

O que Appasionata vai abordar são as relações passionais do artista com sua arte, e as conseqüências dessas relações na vida dos personagens. Somente o personagem de Anselmo Duarte atua como um ser humilde e satisfeito em sua posição de anônimo, e dessa maneira sua sensatez colabora para as resoluções da trama. O pintor Luis Marcos, em sua frustração na condição de artista medíocre, sofre com o ofuscamento provocado pelo sucesso de sua esposa, e o divórcio torna-se a única maneira de vencer seu ego ferido, assim como a morte do maestro se justifica pelo fato de que ele se sente representado na arte de sua discípula/esposa. A própria Silvia Nogalis determina seu egocentrismo ao abdicar do amor conjugal para se entregar inteiramente à carreira.

É uma pena que a cópia em DVD encontrada no mercado esteja tão prejudicada e sem restauração. De qualquer modo, ainda é possível conferir a grandiloqüente interpretação de Ziembinski como o Maestro Hauser, talvez o conteúdo mais marcante da fita junto ao fato de se tratar da estréia de Paulo Autran no cinema – sem dúvida, surpreendente e histórica, atuando como o advogado de defesa de Silvia. É curioso ainda ver Anselmo Duarte com cabelos crespos e pele escurecida, interpretando um mestiço apático, e Alberto Raschel num papel de grã-fino oposto ao rude cangaceiro que o eternizaria na obra-prima veracruziana O Cangaceiro (1953), dirigida por Lima Barreto. A fotografia é composta por um excesso de luzes duras que em alguns momentos artificializa os planos ao criar sombras desnecessárias, entretanto são dignos de nota os vestidos de Tônia, lembrando que o diretor Fernando de Barros se destacaria mais tarde como um grande jornalista de moda, inclusive tornando-se editor de moda da revista Playboy.

Antes de mais nada, Appassionata é um filme de temática universalista e com características do melodrama hollywoodiano, mas ainda assim apresenta resquícios de Brasil.

*Pedro Ribaneto é estudante de Rádio e TV, na Faculdade Belas Artes, trabalha na Bureau Cinema e Vídeo, como consultor, e é assistente de câmera.