Dossiê Carlos Reichenbach

O Império do Desejo
Direção: Carlos Reichenbach
Brasil, 1980.
Por Vlademir Lazo Correa
Quem conhece a obra de Carlos Reichenbach apenas por seus filmes mais recentes deve estar acostumado com um classicismo em seu estilo que não encontra equivalente em O Império dos Desejos, um dos seus primeiros trabalhos. Por outro lado, é um filme que esbanja inventividade, e que tem a ver com muito do cinema transgressor mundial que se fazia na década de setenta, um filme em que Carlão dirige ora como um iniciante cheio de idéias, ora como um veterano na época já dono de invejável bagagem cinematográfica e literária – e já senhor de muitos dos segredos mais ocultos da difícil arte da aventura de filmar.
O título imposto pelos produtores faz menção aos sucessos dos filmes eróticos de Nagisa Oshima do final da década de setenta (O Império dos Sentidos e O Império da Paixão), mas o verdadeiro caldeirão de referências de Reichenbach são outros, a começar pelas idéias de Wilhelm Reich, o psicanalista dissidente de Freud, que teorizou sobre a sexualidade, procurando ver no sexo um elemento de libertação, e que inspirou a obra cinematográfica do iugoslavo Dusan Makavejev, influência confessa de Reichenbach. O Império do Desejo é uma espécie de pornochanchada intelectualizada, mistura alta erudição com autênticas baixarias, podendo ser apreciada tanto pelo sensualismo que emana de seus fotogramas quanto pelo olhar reflexivo e altamente irônico sobre o sexo e a primazia da carne, além de acentuadamente político. Ainda sobre o sexo, Carlão filma com uma fé quase mística no potencial do desejo e no modo como enxerga a sensualidade como sinal de vida, ao mesmo tempo que atuando como um legítimo contraventor, contrabandeando idéias políticas e libertárias para dentro de um típico filme erótico da Boca do Lixo da época, porém muito, mas muito acima da média da produção daquele período.
É um dos roteiros mais inspirados do diretor, que mais uma vez como é recorrente (mas não predominante) em sua filmografia, reúne em um fim de mundo uma galeria de personagens insólitos, a partir da chegada de Sandra (Meire Vieira), viúva de um milionário industrial, no litoral, onde pretende conhecer a casa na praia que herdou do falecido marido. Lá entra em contato com o Dr. Carvalho (Benjamin Cattan, impagável), um advogado picareta que a auxilia judicialmente na posse da propriedade, e também um casal de hippies que contrata como caseiros na residência pelo período de uma semana, para desespero do advogado, que com o seu falso moralismo repudia os hábitos libertinos do casal.
Esse é o ponto de partida de O Império do Desejo, um acúmulo de experiências em que todas as peças se encaixam com perfeição, numa narrativa séria e ao mesmo tempo debochada, quase que sem precedentes no cinema nacional: uma mistura de comédia demolidora com drama desesperado, e uma liberdade anárquica e criadora que remete ao Cul-de-sac, de Roman Polanski, por ambientar a história num único local, para onde convergem as situações mais inesperadas e os personagens mais extravagantes ─ entre os quais, os dois marginais que viajam num jipe, o Gordo & o Magro, que com seus trejeitos e afetações parecem saídos diretamente do clássico Bang Bang, de Andrea Tonacci, e que são algumas das figuras mais divertidas do filme de Carlão. Ou a dupla de estudantes que acampam por perto, uma delas a intelectual feminista (interpretada por Aldine Muller), que em desajuste com as regras pré-estabelecidas, acaba ela mesma criando as suas próprias leis (em sintonia com o pensamento libertário feminino corrente na época), mas sem perceber o quanto auto-centrada ela se torna com a sua ideologia e discurso.
Cabe ainda destacar o hippie tardio representado por Roberto Miranda (o alter-ego do diretor nos filmes desse período), que, com a menor de idade (Márcia Fraga) que o acompanha, forma um casal adepto do amor livre (ele já na faixa dos 35 anos) e do não ter onde morar, além do mais excêntrico de todos os personagens, uma espécie de profeta e anjo exterminador todo vestido de branco, feito por Orlando Parolini, um ex-alto executivo que, por causa das “malditas leituras” (como define o advogado Carvalho), usou o dinheiro para ficar pobre, gastando em poesias, e hoje em dia limpa a praia enquanto liquida boçais de toda e qualquer espécie, enquanto cita passagens de Fernando Pessoa. Por outro lado, a jornalista chinesa que transa de todas as maneiras possíveis com o profeta louco ao mesmo tempo em que recita trechos de Marx e Sade e que é canibalisticamente devorada pelo parceiro é pura citação godardiana.
O Império do Desejo é um filme celebratório que se constrói num clima de “tudo pode acontecer” e que em meio aos conflitos que narra é um registro da tentativa de uma utopia sonhada, mas que não se concretizou. Por que o mundo moderno parece cada vez mais dominado pelos estúpidos com idéias congeladas na cabeça, ou que não as têm nenhuma ─ justamente os tipos que o anjo exterminador aniquila em sua cruzada pela praia em O Império do Desejo. Ou então as questões que tomam de assalto e dilaceram o hippie soturno que, questionando o amor livre, se pergunta “onde acaba o libertário e começa o promíscuo” e conhece o ciúme quando a sua parceira de cama se atrai pelo namorado da dona da casa, um galãzinho arrogante e insuportável com o qual transa, transformando-se em uma experiência desagradável para a menina (o que vem se tornando um dos temas centrais da obra recente do diretor).
Em certos aspectos, o filme do Carlão é profético em relação ao mundo que vem se delineando desde aquela época até os dias de hoje, até por ter sido realizado numa era de transição em que, passadas as conquistas da revolução de costumes dos anos sessenta, os oitenta entravam com tudo em outros tipos de transformações. Formalmente, O Império do Desejo é um filme que parece pulsar a cada momento e com uma liberdade de filmar que contagia o espectador e nos faz querer pegar uma câmera e um carro e ir para o litoral filmar com os amigos. E esta é, sem dúvidas, a maior experiência com que um cineasta pode compartilhar com o seu público.