O Paraíso Proibido

Dossiê Carlos Reichenbach

Jonas Bloch e Vanessa Alves: Onde está a liberdade? Será no encontro da felicidade?

O Paraíso Proibido

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 1981.

Por Eduardo Aguilar

um depoimento

1982. Eu era, então, um cinéfilo apaixonado. Logo, fazer cinema é meu projeto de vida – mesmo que ainda pareça um sonho muito distante. Um amigo me convida para tentar batalhar algum tipo de estágio na “controversa” Boca-do-Lixo, local de onde saem às famigeradas pornochanchadas. Da minha parte, tirando a timidez, o entusiasmo tomou conta: além de conhecer bem inúmeras pornochanchadas, eu admiro os subversores do gênero, diretores capazes de lidar com o popular sem perder de vista seus objetivos artísticos. Entre eles, se destacam Fauzi Mansur, Jean Garret, John Doo, Luiz Castellini e principalmente Carlos Reichenbach.

Pois bem, estamos eu e meu amigo no escritório de A. P. Galante, uma figura singular, produtor de longa história. É um prédio assobradado e, do ponto de vista de uma varanda, ao observar o movimento da Rua do Triunfo, Galante nos esclarece não haver nenhuma produção em andamento, até que, inesperadamente, ele avista o cineasta Carlos Reichenbach entrando no escritório da Embrapi e nos sugere “procurem aquele cabeludo ali”, apontando na direção de Carlão. Lá chegando, precisamos da cara de pau do meu amigo para estabelecer o contato, mas logo fomos surpreendidos pela tão conhecida generosidade do Carlão. Se, de um lado, esse meu amigo faz bem essa ponte, em contraponto, conforme me sinto à vontade, começo a citar os cinco filmes que já havia assistido do Carlão (Amor, Palavra Prostituta; Império dos Desejos; Lilian M., Relatório Confidencial; A Ilha dos Prazeres Proibidos e O Paraíso Proibido) e, além de dar detalhes, confesso minha enorme admiração por Lilian M. Assim, minha paixão pelo cinema superou minha timidez e estabeleceu a amizade entre eu e Carlão, fatores preponderantes que me permitiram adentrar no meio cinematográfico.

No entanto, naquela tarde de 82, lembro que não me fiz de rogado, se por um lado, confessei minha admiração pela obra do grande diretor, também deixei claro que não gostava nem um pouco de O Paraíso Proibido. Lembro que Carlão disse ser um de seus filmes prediletos, uma obra extremamente pessoal, ainda sim, confesso que a declaração não me comoveu. Mas o fato é que anos depois revi o dito filme em uma mostra do MIS. Que dizer? Viver a vida faz toda diferença. Entendi muito melhor sobre o que o filme falava e, para além disso, compreendi as escolhas narrativas, a perfeita combinação entre forma e conteúdo, que talvez nem mesmo Filme Demência, o meu preferido de Reichenbach, tenha conseguido obter.

O Paraíso Proibido é um desses filmes que é preciso rever constantemente. Na primeira oportunidade, eu, ainda nos meus vinte e poucos anos, por mais que tivesse minhas angústias – e eu as tinha -, não consegui me afeiçoar por aquele personagem vivido por Jonas Bloch. O grande ator, mais uma vez em ótima atuação, fazia o papel de um radialista enfastiado com a vida, com o mundo, buscando distância de tudo que recusava: casamento, status de profissional bem sucedido, a necessidade de TER para poder SER em uma grande metrópole. Em função disso, esse homem “foge” para uma cidade litorânea buscando se re-encontrar, porém, para seu martírio, tudo de que queria distância vai diretamente ao seu encontro: a ex-mulher; o amigo/empresário, com proposta de trabalho tentadora; e até mesmo quem não contemplava aquele universo; a amante intelectual (que residia na cidade litorânea), começa a agir no mesmo patamar de cobranças dos demais, com a única diferença que o faz com um verniz pedante. Mas a questão para mim, era agüentar aquele cara, ele sim, um personagem pedante, irritante mesmo, e para piorar, o filme era narrado de forma extremamente linear. Anos depois, ao rever o filme, perto dos quarenta, tudo pareceu tão pertinente, tão preenchido de sentido, que Celso Felix, o personagem de Jonas Bloch, de “irritante” passou a ser um provocador.

Contudo, é preciso dizer que além da vivência alcançada aos quarenta anos, o que mudou meu olhar sobre este filme foi ter descoberto A Primeira Noite da Tranqüilidade, de Valerio Zurlini. Ao ver o filme de Zurlini, praticamente a mesma situação colocada no filme de Carlão, só que no lugar do radialista havia um professor, fiquei embasbacado com a melancolia que saltava da tela em cada imagem, a maestria com a qual o diretor conseguiu capturar a atmosfera da tristeza, um trabalho mágico de composição que beirava a perfeição, desde o adequado desleixo proposto no personagem de Alain Delon, passando pela belíssima fotografia que combinava precisamente com a bucólicacidade litorânea escolhida para as filmagens.

Enfim, o filme de Zurlini é a trajetória de um homem em busca de liberdade, de respirar novos ares na tentativa de se re-inventar. Mas onde está a liberdade? Esta é também a questão central do filme de Carlão: “Como podemos afirmar nossa individualidade se a todo o momento “os outros” nos cobram atitudes, limitam nossas ações com todo tipo de chantagem?” Mas convém deixar claro, que o filme nunca perpassa uma visão intolerante sobre o outro, pessoalmente acho que o personagem do amigo inconveniente, capaz de oferecer a própria mulher como moeda de troca, é um dos personagens mais intensamente humano da obra de Carlão.

Todavia, estar no mundo é aceitar a possibilidade do outro e, por conseqüência, fazer “escolhas”, que é o que nos torna livres. Portanto, escolhas são mediadas pela relação com o outro. Este desafio sempre me parece o que realmente dá sentido à vida, pois se transitar por ela fosse atravessá-la sem dificuldades inerentes que surgem do contato com o outro, estaríamos de fato no “paraíso”. Por isto, é bem instigante que o filme se chame O Paraíso Proibido, caso contrário, tudo seria um tanto sem graça, “um caminhar sem obstáculos”. Aceitar essa “limitação” sobre nossas ações é como ter que aceitar a impossibilidade da liberdade. No filme de Carlão, ao contrário da tristeza capturada pela câmera de Zurlini, há o enorme incomodo vivido pelo personagem, uma angústia sem resposta sobre como exercer o direito de buscar um caminho próprio, alheio a idéia de se subjugar ao estabelecido como “a melhor escolha” pela sociedade.

Não sei quais as verdadeiras intenções de Reichenbach com o seu final redentor, propondo ao personagem central um encontro com a felicidade. A meu ver, seria um encontro possível com uma espécie de liberdade, ainda que, paradoxalmente, esta felicidade, no caso do filme, seja em decorrência de um novo amor, quer dizer, em decorrência do “outro”. Por isso acredito que a liberdade exista exatamente no efêmero, apenas breves momentos dessa sensação enquanto a felicidade/amor não corrói a liberdade.

De repente, me vem à mente o filme de Eastwood, Interlúdio de Amor, no qual o personagem também ranzinza vivido por William Holden, parece de pronto rejeitar a idéia de felicidade, mesmo que efêmera, por considerar que a possibilidade dessa felicidade perecível já seria em si uma razão para desistir da mesma. O elemento subversor no filme de Carlão é que não há razão para temer a felicidade, e nesse caso, o final feliz, ainda que irônico, é uma idéia brilhante, sobretudo por que propõe esperança: a crença na Utopia.

Eu tinha combinado com o Gabriel, atual editor-chefe da Zingu!, que encaminharia para esta edição – em homenagem ao Carlão – um texto sobre O Paraíso Proibido e um depoimento, no entanto, as coisas se misturaram de tal forma que resolvi não distinguir um texto do outro.

Por fim, fico por aqui e, a meu ver, O Paraíso Proibido está lado a lado com Filme Demência, uma obra-prima que precisa ser redescoberta. 

*Embrapi: Produtora independente que reunia diretores e técnicos numa proposta provocadora de produção, infelizmente não foi adiante. (very small)