Dossiê Carlos Reichenbach

Lilian M., Relatório Confidencial
Direção: Carlos Reichenbach
Brasil, 1975.
Por Daniel Salomão Roque, especialmente para a Zingu!*
Nas entrevistas que concedeu para divulgar seu último longa-metragem, Falsa Loura, Carlos Reichenbach chegou a afirmar umas tantas vezes que este era uma obra-irmã de Lilian M, Relatório Confidencial. Eis uma declaração monstruosamente sintética e de enorme perspicácia, que diz muito sobre ambos os filmes e mais ainda a respeito de seu realizador. Reichenbach não é apenas um dos mais talentosos e importantes cineastas do Brasil, mas também um dos mais hábeis na arte de se reinventar: suas fitas, ainda que pareçam opostas em determinados momentos, estabelecem diálogos umas com as outras e apresentam um raro senso de coerência.
Mais de trinta anos separam as trajetórias de Célia Olga Benvenutti e de Rosane Mulholland, período no qual Carlão passou da condição de iniciante (Lilian M é seu segundo longa) para veterano. Assim sendo, a relação entre uma obra e outra não é a de gêmeos idênticos em aparência e comportamento, mas de irmãos com grande diferença de idade que, a despeito de carregarem o mesmo DNA, são dotados de temperamentos bastante distintos. Os dois se valem da técnica cinematográfica que se escancara como tal, do mosaico de referências e da reciclagem de clichês para costurar retratos nada vulgares do sexo feminino, da prostituição e das classes populares paulistas; no entanto, o autor não utiliza estes recursos da mesma forma e tampouco aborda as temáticas sob o mesmo ângulo. Se Falsa Loura flerta nitidamente com o melodrama e o filme musical, Lilian M se apropria destes e de diversos outros gêneros, fugindo a qualquer classificação: o universo caipira tão caro à cinematografia brasileira, as perseguições das fitas policiais, os hormônios típicos da pornochanchada, o bucolismo do cinema japonês, os detetives burros do noir e tiradas godardianas compõem um painel heterogêneo e debochado, quase grotesco, que em muito difere da dolorosa delicadeza da película de 2007.
Já na abertura, Lilian M demonstra ser incomum. Não vemos ninguém, os letreiros não aparecem de imediato; só o que temos é a imagem de um gravador e o diálogo em off entre um homem (possivelmente o diretor) e a atriz principal. Esta, ao ser interrogada a respeito de sua identidade, confunde-se e informa não o nome da personagem que interpreta, mas o seu verdadeiro, sendo logo corrigida pela voz masculina. O que se segue, de acordo com o próprio subtítulo, é uma sucessão de relatos íntimos acerca do meretrício e dos relacionamentos vazios: Maria, esposa de um humilde plantador de chuchu, abandona marido e filhos para tentar a sorte na cidade grande; lá, torna-se amante de um empresário para quem trabalha como doméstica e que a inicia na “vida fácil”. Como vingança, a ex-lavradora e recém-nascida prostituta passa a atender clientes sob o pseudônimo de Lilian, nome da mãe de seu patrão.
A narrativa é deveras fragmentada, e essa fragmentação deve-se mais ao uso constante de elipses do que a inversões cronológicas propriamente ditas: muito do poder deste filme se baseia naquilo que não sabemos. Reichenbach vai além da sugestão, esbarrando na omissão. Em certo ponto, o interlocutor pede à narradora que abrevie o discurso; nossa protagonista troca a toda hora de parceiro sem que fique claro como se deram as separações e o que ocorreu nos intervalos entre um romance e outro; relatos de situações que em circunstâncias normais seriam consideradas grandes ganchos são interrompidas sem o menor pudor; por fim, existe Maria, de quem pouco ou nada sabemos, uma vez que o filme é sobre Lilian.
O paradoxo de Lilian M é o fato de todos no filme falarem mais que a boca, menos a dita cuja. Célia Olga personifica um enigma. Sua presença é força motriz de eventos inacreditáveis, uma bizarra fauna humana profere monólogos aos seus ouvidos, e, no entanto, quase não escutamos sua voz. Ao filmar Maria, ou melhor, Lilian, nos contando suas peripécias em flashback, o autor aproxima público e protagonista de maneira brutal, ao mesmo tempo em que sugere uma mistificação desta mulher. Embora isso aconteça de vez em quando, Lilian dificilmente ri, chora ou demonstra qualquer tipo de emoção; ela é helênica, impassível e quase sempre mantém uma postura hierática, mesmo quando sua em bicas no sertão ou atende a uma multidão de escrotos num puteiro de quinta categoria. Seria reducionismo dizer que a personagem transforma os lugares por onde passa: mais do que isso, Lillian se mescla ao ambiente, e assistir ao filme é conhecê-la por intermédio dos coadjuvantes.
A sociologia barata não tem espaço no trabalho de Carlos Reichenbach. Se a fita em questão alude a temas como exploração sexual, desigualdade de classes, repressão política e êxodo rural, o cineasta não o faz para defender uma tese ou por proselitismo, mas sim com o objetivo de construir um universo próprio. Tal premissa fica evidente quando tomamos como exemplo uma cena de Alma Corsária, outro belo filme do mesmo diretor. Numa certa altura da história, uma prostituta nascida no interior do estado de São Paulo viaja rumo à sua cidade natal acompanhada de um amigo, que será apresentado ao pai da moça como se fosse seu noivo. Reunido com a família da jovem, o rapaz assiste na televisão às imagens de um lavrador sonhando com a hipótese dos filhos um dia estudarem na metrópole: é um trecho de Lilian M. A auto-citação não é nenhum pouco gratuita, e mostra que Reichenbach não cai no simplismo de utilizar o cinema como mísera ferramenta para discorrer sobre os grandes problemas do nosso tempo. Para ele, cinéfilo apaixonado e utopista assumido, os assuntos delicados é que servem de pretexto para se discutir os filmes. E, em se tratando da grandeza e originalidade de seu estilo, isso não é subestimar as questões sociais e tampouco sobrevalorizar a sétima arte.
*Daniel Salomão Roque é fanático por quadrinhos e cinema. Colaborou fixamente com a Zingu! por 15 edições, das quais 12 com a coluna Tesouro dos Quadrinhos.