Garotas do ABC

Dossiê Carlos Reichenbach

Garotas do ABC

Direção: Carlos Reichenbach

Brasil, 2003.

Por João Pires Neto

(Contém spoilers)

O projeto e a inspiração

No projeto original concebido por Carlos Reichenbach em 1987, logo após Anjos do Arrabalde, dois longas seriam rodados simultaneamente, nas mesmas locações e com as mesmas personagens. Sonhos de Vida e Vida de Sonhos reproduziriam a visão pessoal do cineasta sobre duas faces distintas do universo feminino operário na periferia da Grande São Paulo: enquanto o primeiro abordaria a rotina de trabalho árdua das mulheres em uma indústria têxtil, o próximo apresentaria a realidade destas nos raros momentos de folga. Segundo o próprio Reichenbach, a premissa do projeto era descaradamente anarco-libertária, pois partia do conceito de que o tempo livre é o único e verdadeiro espaço de liberdade do ser humano.

Garotas do ABC, o seu décimo terceiro trabalho, é o piloto resultado deste projeto audacioso, que ao longo de quase uma década foi se alterando (Carlão chegou a cogitar uma série de seis produções protagonizadas com cada uma das personagens apresentadas neste primeiro filme, que se chamaria ABC – Clube Democrático, com a possibilidade de ser exibido em 13 episódios na televisão). O cineasta confessa que a maior inspiração para o projeto foi o monumental Berlin Alexanderplatz (1980), considerado por muitos a obra máxima do alemão Rainer Werner Fassbinder. A série televisiva, uma adaptação de quase 16 horas do romance expressionista de mesmo nome publicado por Alfred Döblin em 1929, tinha como cenário a realidade operária e o submundo da Berlim no início do século passado.

No entanto, o tema da mulher em condição marginal, subjugada às imposições sociais ou raciais, já se esboçava em outras produções de Reichenbach, como em Amor Palavra Prostituta (1981) e Anjos do Arrabalde (1987).

As personagens

Garotas do ABC traz no subtítulo o nome da personagem que centraliza todos os fios narrativos. Aurélia Schwarzenega, interpretada pela então desconhecida Michelle Valle, é uma bela e sexy operária negra, fã de homens musculosos (em especial o governador da Califórnia e ex-Exterminador Arnold Schwarzenegger), filha de pai conservador, mas que aposta num incerto namoro inter-racial, que é agravado pelo fato de o namorado, Fábio, estar envolvido com um grupo neonazista, liderado pelo jovem e alucinado advogado, Salesiano de Carvalho (interpretado por Selton Mello, que aparece também como produtor associado). Aurélia mora em Santo André e trabalha numa tecelagem em São Bernardo, onde também são empregadas as outras garotas do título: Paula Nélson, a funcionária mais experiente e respeitada do setor, assediada pelo sindicalista André Luiz Oliveira; a sensual e desinibida Lucineide; Antuérpia, a mais velha das garotas, recém contratada na tecelagem, obrigada a trabalhar pela primeira vez na vida após a morte do marido e os avôs paternos lhe retirarem a guarda do filho; Suzana, autodenominada casta, apaixonada pelo patrão, vítima de frequentes e misteriosos acidentes que lhe garantem boas indenizações trabalhistas, mas que acabam por lhe marcar o belo corpo; a inconsequente Arlete; Marcinha; Nelinha; Indarlécia; Kinuyo; Nair; Carmo; Natália. Um retrato fragmentado da realidade vivida pelas mulheres nas periferias da Grande São Paulo, ainda que a proposta principal de Reinchenbach não seja se aprofundar de forma documental em nenhum tipo de estudo sociológico.

Já a maioria dos personagens masculinos, sempre coadjuvantes (nada mais justo numa ode às nossas mulheres operárias), reflete a antítese do feminino idealizado por Reichenbach: André Luíz, o esperto e mulherengo líder sindical; o patrão explorador Dr. Manzini; Aurélio, pai da protagonista, ultraconservador; o justiceiro Maleita; o fascista Fabio, atormentado pela paixão incontrolável por uma mulher negra (Aurélia); e o vil Salesiano de Carvalho, mentor intelectual e incitador do ódio aos negros e nordestinos. Curiosamente, o cineasta nomeou alguns dos personagens com o mesmo nome de seus amigos mais próximos. Segundo ele, estes personagens refletiriam exatamente o reverso da personalidade dos homenageados.

Carlos Reinchenbach constrói com maestria um grande mosaico de frustrações e alegrias, com personagens que, embora, como faz questão de ressaltar o diretor-roteirista, sejam ficção, representam de forma intensa e apaixonada uma diversidade de raça, idade, tipos físicos e ideologias.

Entretanto, não seria honesto ignorar que o elenco, talvez pela inexperiência de alguns atores, por vezes apresenta atuações pouco convincentes que comprometem a profundidade das personagens, provocando uma enganosa sensação de clichê e exagero.

O núcleo fascista

Um destaque positivo é a maneira direta (e jocosa) como é representado o grupo de neonazistas: um bando de fracassados, desorganizados, frustrado, liderados por um “riquinho” movido a cocaína, a Wagner (o compositor preferido de Hitler) e a ideologias racistas. Em Garotas do ABC, o neonazista não é o careca branco estilizado, e sim os tipos mais ridículos e patéticos.

O corte oficial

A primeira edição de Garotas do ABC resultou num longa-metragem de quase 3 horas de duração. No entanto, Reichenbach viu-se obrigado a cortar cerca de 45 minutos de filme, por duas razões distintas: a dificuldade em distribuir e exibir comercialmente uma produção tão longa e o inesperado destaque que o núcleo fascista acabou ganhando após a montagem, o que desvirtuava a proposta original do cineasta. Decidiu então, acertadamente, diminuir a participação dos neonazistas pela metade, chegando aos 125 minutos oficiais de Garotas do ABC (se bem que uma versão sem cortes alternativa seria bem vinda no DVD).

Reverência ao cinema

Podemos destacar vários momentos em que o cineasta homenageia realizadores que direta ou indiretamente sempre influenciaram sua obra. Uma destas homenagens é a curiosa e quase surreal sequência em que o justiceiro Maleita executa dois membros do grupo fascista. Nesta citação explícita a obra de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol, por sugestão do ator Alessandro Azevedo, Reinchenbach inseriu no diálogo a oração original que o mítico cangaceiro Lampião usava enquanto eliminava os seus desafetos.

Outro homenageado é Fritz Lang, que, segundo Reinchenbach, teria influenciado gradativamente e de forma inesperada a construção da mise-en-scène de Garotas do ABC. Assim como o realizador alemão fazia em todos os seus filmes, o brasileiro fez uma pequena aparição como Dr. Manzini, na qual não identificamos o seu rosto, vemos apenas a sua silhueta e as suas mãos. Em outra cena vemos em close a tatuagem em forma de E (símbolo do Integralismo) nas costas de Salesiano. A imagem gira 90 graus e vemos um M, referência ao clássico M – O Vampiro de Dusseldorf, o primeiro filme falado dirigido pelo austríaco Fritz Lang em 1931.   

Carlão ainda reverencia outros companheiros do Cinema Novo e Marginal, como José Mojica Marins (em determinada cena vemos um televisor exibindo um filme do Zé do Caixão) e Rogério Sganzerla (na pichação dos neonazistas, onde se pode ler “Quem Tiver Sem Sapato Não Sobra”, subversão da célebre frase “O terceiro mundo vai explodir. Que tiver de sapato não sobra!”, gritada por um alucinado personagem em O Bandido da Luz Vermelha).

Até mesmo o cineasta Lucio Fulci é lembrado, quando vemos pôsteres de seus filmes enfeitando o bar onde se encontram os neonazistas. Próximo ao epílogo, Garotas do ABC ainda traz uma releitura da sequência de Apocalipse Now (de Francis Ford Coppola) na qual helicópteros voam em direção a um bombardeio ao som de Cavalgada das Valquírias, de Wagner. Na versão de Reinchenbach, os neonazistas estão na estrada em carros e motos, ouvindo Wagner, e rumando em direção ao Clube Democrático, onde pretendem surrar nordestinos e negros. Dizem que Hitler certa vez ordenou que fosse tocada a composição nos rádio-comunicadores dos tanques nazistas antes de iniciar um ataque as tropas aliadas.

O desfecho

As tramas de Aurélia e do grupo fascista terminam de forma incomum. Enquanto a solução para a protagonista é mais simples e bem humorada (o rompimento com o namorado-problema e o possível início de um novo relacionamento inter-racial, agora um oriental a quem ela chama carinhosamente de “meu Bruce Lee”), o desfecho da personagem xenofóbica interpretada por Selton Mello é bem mais simbólica: enquanto um exemplar de um livro de Plínio Salgado, fundador do chamado Integralismo (movimento fascista brasileiro) se decompõe nas ondas salgadas do mar, Salesiano repete um discurso retirado da obra Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, um dos pensadores que influenciou Adolf Hitler. Louco e abandonado, Salesiano está prestes a ser tragado pela imensidão do mar.

A tecelagem

Consciente ou inconsciente, a tecelagem onde trabalham as garotas representa a grande metáfora do filme. Os teares (restaurados para a produção) entrelaçam os fios dando vida a belos tecidos, assim como as personagens, com suas alegrias e seus dramas que se multiplicam também se entrelaçam num emaranhado caótico de vozes, que carregam nas entrelinhas o discurso de um dos poucos cineastas brasileiros que ainda pode ser chamado de Autor.       

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