Dossiê Carlos Reichenbach
Entrevista com Carlos Reichenbach
Parte 7: Cinema Interditado
Por Gabriel Carneiro e Filipe Chamy
Fotos: Laís Clemente
Zingu! – E o mercado de DVD, Carlão?
Carlos Reichenbach – É limitado também, e é uma coisa que não sei até quando vai durar. Há que se convir que é uma mídia que em dois ou três anos pode mudar totalmente, deixar de existir. Você bota um pen-drive lá e… Minha filha trouxe dos Estados Unidos um HD de 500 GB e eu não tenho mais espaço. Tem muita coisa que eu coloco, filmes essenciais com legenda em português, filmes de interesse com legendas em outra língua, meus filmes mesmo. Levei um tempo para fazer um levantamento. Um cara de uma revista estava fazendo um levantamento sobre “o melhor do cinema explícito” (palavras dele). Disse que não era de cinema erótico, mas explícito mesmo. Fiz uma relação para ele, escrevi um texto que ele falou que ia publicar e não publicou. Quando eu vejo, outros cineastas colocaram para o cara filmes como O último tango em Paris. Falei que era sacanagem, ele estava fazendo miscelânea, para mim fala uma coisa e para outras pessoas, outra coisa? São poucos os que têm coragem de assumir que assistem com o mesmo interesse o filme explícito e o softcore comum. Parecia que eu era o único cara que assumia que via filme pornô. Falei para ele: “sabe por que vejo filmes pornôs? Porque passei cinco anos trabalhando num projeto chamado Cinema interditado”, o que ia ser a sessão do Comodoro. Queria fazer um filme sobre a censura no ano todo, com dinheiro e co-produção dos italianos. A primeira vez que vi Canibal Holocausto fiquei ofendido, achei um horror. Depois virei fã.
Z – Isso foi quando, você tem idéia?
CR – Ah, na época em que o filme foi lançado no Brasil. Depois vi tanto filme chocante, por causa desse trabalho de pesquisa para esse projeto. Guardei tanto filme chocante, desde o Maomé, com o Anthony Quinn – você não pode mostrar em país islâmico, não pode mostrar Maomé num filme, ainda mais com o rosto do Anthony Quinn (risos) – até snuff de verdade. Tem que ver tudo, o que é proibido aqui não é proibido em outros países, e vice-versa. Por conta disso, ods filmes mais ignóbeis e torpes já feitos na História do Cinema, fiz essa pesquisa na época em que trabalhava no Terra. Fiquei amigo do Albornoz, do Dennison, por causa dessa pesquisa, sabia? A primeira vez que vi The man behind the sun, que tem um título aqui esquisito para cacete, As bactérias não-sei-o-quê, um marco do cinema, um filme chinês sobre aquilo que os japoneses inventaram de trabalhar com cadáveres e tudo. Lembro que o filme passou na mostra do Cakoff e metade da platéia saiu pra vomitar! Uma parte deve ter saído chocada! Fui rever com outros olhos, já havia tanta coisa mil vezes pior, passei a gostar. Sempre defendi a questão da liberdade, para entender esse cinema é preciso passar num vestibular de tolerância. Existe uma diferença brutal entre o filme violento e o filme sobre violência. O filme violento, em sua essência, é complacente; o filme sobre violência é literalmente contra o que está mostrando. Isso vale para qualquer outra coisa. Hoje sou capaz de detectar isso com clareza, fiz muita essa experiência. Quando eu exibi Buio Omega, foi a maior retirada do cinema; esse filme deve ser enxergado, antes de mais nada, como uma das mais belas histórias do amor que já se viu na vida! Só um cara que ama integralmente a mulher é capaz de abrir o túmulo dela, abrir suas vísceras e vivificar essa mulher. Claro que um cara despreparado vai desmaiar durante a sessão (risos), teve gente passando mal! Você tem dois parâmetros, essa é a idéia desse filme; quando aquela coisa que é para você abominável, deixa de sê-lo. É para aprender a tolerância. A partir dessa experiência com a tolerância, você consegue detectar com clareza o que é o mau filme, sem sentido moral, mas quase no sentido poético-estético. Dentro do “cinema inocente”, qualquer filme no mundo, por pior que seja, tem uma centelha de genialidade. O prazer do cinéfilo é descobrir essa centelha. Descobri-la num filme óbvio qualquer cinéfilo de merda faz. O verdadeiro cinéfilo é o contrário, ele tem que saber detectar o sublime onde menos se espera. Foi fundamental para mim nesses cinco anos, onde vi de tudo, viajando para o exterior, até. Fui a locadoras na Europa, achei muitos cinéfilos assim. Em uma só tinha filmes estrangeiros, queria comprar filmes do Jean Rollin, dificílimos de achar. Ele é o Mojica francês. Possivelmente nesse Ano da França no Brasil ele virá até aqui, numa retrospectiva – isso está sendo estudado com muito carinho. Vamos estimular, ele merece mesmo, e que traga junto a Brigitte Lahaie, hoje senhora. Eu me lembro que estava numa locadora, tinha um monte de filmes japoneses, mas eu não ia no óbvio, no Kurosawa; ia no Kô Nakahira etc. O sujeito me viu, perguntou se eu gostava de filmes japoneses. Eu falei a ele que estava desesperado para achar os filmes do Jean Rollin. O olho dele brilhou, perguntou se eu queria conhecê-lo, “Rollin c’est le poète”. Aí ele me deu todas as indicações (risos), comprei As órfãs vampiras com indicação do cinéfilo da locadora do Quartier Latin. Falou que lá não tinha, mas me deu o endereço para buscar. No fundo, você percebe que se tem preconceito com filme popular, vai perder ainda muita coisa mais. Ainda havia preconceito com filme de violência.
Z – Mas você tem nenhum preconceito com filmes?
CR – O preconceito foi pras cucuias, dava para perceber que havia o filme bom e o filme ruim, o filme inteligente e o filme burro, o filme ignorante. A coisa era autodidata, o cinema que nasce da experimentação, da novidade, da vivência do cinema. Onde está a genialidade do Mojica? O que fascinava a mim, ao Callegaro, ao Sganzerla? Aquilo que o Person, amigo dele, falava: era um cara que aprendeu o cinema na raça, absolutamente na raça, aprendendo errando. Luta contra tudo e todos, com descrença absoluta. E trabalha uma coisa espetacular, a cultura popular, a nossa cultura bárbara. A fé. Aí alguém fala: “gosto da chanchada, mas olho com olhos pedantes, de erudição”, não, tem que gostar pelo gosto do carnaval, as nossas crendices, as nossas fraquezas, a nossa mediocridade. Tem que assumir, aí está a diferença. Por que essa resistência contra certas coisas? Porque é uma coisa a que você não está acostumado. Se você não foi educado ouvindo música caipira, vai ter resistência a ela. Só fui aprender a gostar de música caipira ouvindo a melhor música caipira, convivendo, inclusive, com Tião Carreiro e Pardinho. No meu primeiro contato com o Ivan Lins falei para ele que só comecei a gostar de música sertaneja brasileira no contato direto que tive trabalhando, porque fiz dois filmes com Tião Carreiro e Pardinho, como técnico. Isso não é música importada americana. Country brasileiro… Isso é música sertaneja autêntica. Eu tenho impressão que é a mesma coisa com o chamado cinema popular brasileiro: o melhor cinema popular é aquele de quem acredita no que está fazendo, tem o romantismo desbragado. Falaram do “o melhor filme caipira”, eu acompanhei aquela filmagem, Sertão em festa, do Oswaldo de Oliveira – o Oswaldo de Oliveira ouve aquele tipo de música! Ouvia todo dia. Ele foi o cara que me ensinou fotografia, trabalhava nos filmes dele até como técnico de produção. Ele só ouvia no rádio música sertaneja, da boa. Então faz um filme com conhecimento de causa. É algo que não se aprende, como o samba, ou você nasce com aquilo, uma alma livre, ou não tem. Hoje você percebe isso com o terror brasileiro. O melhor terror brasileiro é feito com as nossas crendices populares, essa coisa da procissão da meia-noite, tudo tratado no Mojica, o cara comendo carne de porco no meio de uma procissão à meia-noite (risos), alma penada. O que me fez aprofundar nisso, trabalhando no Cinema interditado, foi essa diferença entre o cinema instintivo e o cinema cerebral. Em um determinado momento, valorizar ainda mais o chamado cinema instintivo. O cinema cerebral também faz parte do meu cotidiano, da minha vida, mas tem uma coisa difícil de detectar no cinema instintivo, uma coisa fascinante. Levei tempo para aceitar que alguns desses cineastas me fascinavam, e por quê me fascinavam.
Z – E o que aconteceu com o projeto?
CR – Depois de quatro anos e meio, o produtor chegou à conclusão: “Olha, vamos fazer as contas”, e acertou com um cara a compra dos direitos autorais. Essa série de filmes envolvia Canibal Holocausto, Maomé, até filmes mais ardidos mesmo, filmes do Joseph Sarno, primeiro filme onde tem DP dupla – o que é um contrasenso, Dupla Penetração –, as câmeras de tabus, de repente tinha que comprar um filme alemão horroroso, mas tinha que ter, senão ia ficar faltando. E é duro você trabalhar num material em que você deixa de falar alguma coisa por uma questão de censura, não pode ter censura. Todas as aberrações que o cinema já aprofundou, ou que existem, ou que tem uma ramificação lá dentro que é dedicada isso, fui obrigado a tratar. Vi cada coisa que você não imagina. Sabia que tinha aberrações de zoofilia, necrofilia, mas algumas coisas eu pensava como o ser humano pode chegar a esse ponto, atração à merda. São coisas que a gente só sabia no Teatro da Agressão, no material, claro, do Otto Mülh, que trabalhava isso de forma ritualística. Sabe quem é Otto Mühl? Tem que ver! E isso você baixa de graça, inclusive pode ver no Museu Otto Mülh, são filmes de três, quatro minutos, fácil, rápido. Você viu Sweet movie? Nesse filme eles não levam a moça lá para morar numa comunidade, que fica cagando no meio de um negócio lá?… É Otto Mülh! É a comunidade do Otto Mülh! É maravilhoso! Esse obviamente está no meu arquivo. Esse filme é um exercício de liberdade. Especialmente as conseqüências, quem viu não acreditou, é um festim.