Entrevista com Carlos Reichenbach – Parte 8

Dossiê Carlos Reichenbach

Entrevista com Carlos Reichenbach

Parte 8: Sobre o cinema mundial

Por Gabriel Carneiro e Filipe Chamy

Fotos: Laís Clemente

Zingu! – Carlão, mas o cinema antes mal visto não virou Cult?

CR – Quando eu vi os primeiros filmes do Mario Bava, ninguém falava bem dele, só mal. São exemplos genéricos, mas em 1966 eu me lembro que entrei no cinema para ver o filme do Riccardo Freda, Maciste no inferno, fiquei completamente fascinado, tinha vergonha de dizer aos meus amigos que voltei mais duas vezes para ver esse filme. Havia preconceito com filme histórico italiano. Nem com faroeste havia tanto preconceito quanto com o peplum, esse gênero de filmes históricos. Eu vi e falei: “puta, que troço genial!”, meia dúzia de gatos pingados, o resto é fumaça e luz! Cinema, eu estava vendo Cinema, caralho! E nunca tinha ouvido falar do Riccardo Freda, mal sabia que esse cara tinha feito uma chanchada no Brasil, chamada Um caçula do barulho [1949]. Evidentemente, anos depois, de repente Riccardo Freda e Mario Bava viraram mitos. Aí fui rever o filme e é genial! No fundo, tudo que as pessoas elogiaram num cineasta alemão chamado [Hans-Jürgen] Syberberg e que eu achava um pé no saco monumental – e que ninguém fala, mas vá ser chato no raio que o parta!, teatral, barroco… –, o cara fazia isso em filme histórico italiano com genialidade, aquela teatralização. O cara não tinha dinheiro, colocava um monte de pedra com fumaça saindo, uma luz vermelha, aí aparece o inferno do Maciste, com meia dúzia de gatos pingados, isso é coisa de gênio. Sem ser chato! Aí vá para Itu e coloca uma luz esquisita lá, é O cangaceiro sem deus, do Oswaldo de Oliveira, uma maravilha, cangaço feito em Itu. De uma certa forma, acaba virando uma obra de arte mesmo sem ser concebida para isso. Feito com pouco dinheiro, é como com os filmes iniciais do Jacques Tourneur, do começo da carreira do Val Lewton, filmes feitos por economia, grava tudo no escuro, cria uma atmosfera, faz o barulho e o povo já se borra no cinema. A imaginação é pior do que o mostrado na tela. Isso foi aplicado em todo o cinema do mundo. Foi um grande momento na minha vida, quando limpei meus olhos para poder me preparar para o projeto do Cinema interditado. Aí vi tudo, tudo que você pode imaginar. Filmes explícitos, aberrações das mais estapafúrdias, coisas que eu nem imaginava, gostos dos alemães, caí de quatro com esse choque. Foi um vestibular de tolerância. De repente você consegue extrair algum momento genial em qualquer tipo de filme, por mais medíocre que seja. Já se pode detectar isso desde os anos 1950, cinema de bairro. E se eu disser para você que uma das seqüências mais importantes de Filme demência foi influenciada por um filme que a crítica brasileira tratou mal pra burro, Chico Alves não morreu, a história do Francisco Alves? Vi o filme quando moleque, e não me saiu da cabeça. Queria uma cópia. Aquilo ficou eternamente comigo. No filme, o Chico Alves vai a uma cigana e ela fala: “cuidado com estradas”. Eu era pequeno, me borrei só de ouvir isso, aí tem no filme o carro passando pela Via Dutra, uma panorâmica pela estrada e entra em close na cigana e bum, o cara morre! Isso é Filme demência, saiu de Chico Alves, não saiu? Eu já tive vergonha de falar que o filme abalou minhas estruturas. Não importa, você acha o filme uma bosta, mas ele mudou a minha vida. É uma experiência pessoal e intransponível. O filme que pra você não diz nada, para outra pessoa pode ser transformado, revolucionário, capaz de mudar a vida dela do avesso. Para dizer que o filme é muito ruim, ou é pretensioso, feito pra ganhar prêmio e aparecer, ou é fricote, o que é a pior categoria da criação. Os fazedores de moda, “esse você tem que ver”, para mim estão na lista negra. Os únicos. Com o resto não tenho preconceito, tem que ficar de olho em tudo. Já tive preconceito com filmes do Steven Seagal (risos), achava o cara o pior ator do mundo! Mas aí vi um filme com ele, Anjo negro ou algo assim, filme de um diretor bom pra cacete, acredite se quiser. É difícil um caso assim. Pegue este ano, por exemplo. Qual o melhor filme que você viu este ano?

Z – Gran Torino, do Clint Eastwood [responde Gabriel].

CR – Meio óbvio, né? Tem filmes melhores do próprio diretor. Também tem muito filme que não está sendo lançado. Guerra sem cortes não foi lançado até agora, e é o melhor filme da década. O filme me tirou do sério, o De Palma quando acerta, sai de baixo! Corajoso pra cacete, todas as linguagens possíveis do cinema. Me surpreendeu o filme do Ang Lee. Magistral! Talvez o melhor filme do ano que vi até agora. E o novo filme do Paul Schrader, que só saiu em DVD, acho. O anterior já era o melhor filme que vi no ano passado. O melhor do ano passado foi um que o Woody Harrelson fazia um cara meio fresco, da alta sociedade, lembra bastante os filmes do Paul Schrader. Você viu? Filme magistral, O Acompanhante. Só saiu em DVD. Ficam reclamando da gente, se Paul Schrader não consegue entrar numa sala de cinema! E tem um filme recente que saiu, Adam Resurrected, puta que pariu! O cara continua sendo um dos grandes. Nem filme comercial é, a Kathryn Bigelow também não consegue mais lançar. Você não consegue nem respirar no filme, tamanha eficiência. Lembra o Hawks, não tem história. O que é Hatari!? É um filme sobre um monte de macho caçando rinoceronte e uma mulher enchendo o saco. (risos) Os filmes dela são exatamente iguais. Nem falo sobre filmes que não são feitos com intuito de passar à posteridade. Fica a recuperação, veja, alugue O acompanhante, porque é uma obra-prima.

Z – Quais diretores você despreza, os “tapeceiros”?

CR – Não gosto do Wong Kar-Wai, por exemplo. Eu não suporto esse cara.

Z – Para você, o Cronenberg se ajusta nessa definição que você falou de “mostrar um filme sobre a violência, mas não compactuar com ela”?

CR – A diferença dos filmes do Cronenberg, o que torna ele um dos maiores – a meu ver, talvez um dos três grandes em atividade junto com Martin Scorsese e Brian De Palma. Mesmo quando erram – e erram pra valer (risos) – são de tirar o chapéu, deixe-os errarem, vão acertar na próxima. O que marca o Cronenberg é que ele cria um universo e uma geografia muito pessoais, e se você levar à risca, ele cria uma metáfora. Não acho que ele faça filmes sobre violência. Sabe que eu fui o primeiro brasileiro que entrevistou o Cronenberg? Para Folha de S.Paulo, para o Folhetim. O primeiro! E a porra da editoria me bota um título lá que me deu uma raiva desgraçada: “O mestre do nojo”. Porque era a época de A mosca. Fui o primeiro que assumiu que gostava desse cara. E quando eu estava na Holanda, teve homenagem a ele, e eu vi tudo, Stereo, aqueles primeiros filmes… E eu levantei isso no debate, que eu acho que ele faz filmes sobre dor. O grande tema dele não é a violência, mas a dor. Quem o definiu bem foi o Martin Scorsese, que falou que ficou muito impressionado com um daqueles primeiros filmes do Cronenberg, não me lembro qual, acho que foi com o filme que ele fez com a Marilyn Chambers [Enraivecida na fúria do sexo], que é sensacional, por sinal. Aí convidou o Cronenberg para casa dele, disse que gostaria muito de encontrá-lo, ficou entusiasmado. Quando abriu a porta, disse que pensou que ali havia uma pessoa que tinha se enganado de endereço, parecia um médico obstetra, um cara de paletó e gravata, de óculos (risos)! Eu fui num jantar, foi no ano em que fui acompanhando a produção de um filme estrangeiro chamado City life, co-produção com a Holanda, e teve uma hora que todo mundo foi jantar num restaurante indiano, onde servem um prato coletivo, todo mundo em volta de uma mesa, um monte de pratinhos de arroz com um monte de coisinhas diferentes, e fica aquela coisa rodando, e você pega do prato de um, de outro… O Cronenberg foi para outra mesa comer separado, ele não conseguia misturar! O cara é muito louco. Ele não podia conceber pegar com o garfo dele a comida que você tinha botado no seu prato. Aí a gente estranha, o cara faz aqueles puta filmes nojentos… (risos) Mas na hora de botar os demônios para fora, ele bota! No fundo, os últimos filmes dele são mais wellesianos. O Welles dizia: “não consigo separar política do crime”. É o vértice mais wellesiano do cinema do Cronenberg. São mais políticos esses filmes, o crime é quase um partido, uma organização, uma estrutura quase hierárquica. Isso é o que é fascinante nesses filmes. Aqueles planos estranhos, A marca da maldade, aquele abertura, atravessa uma fronteira inteira, vai explodir um carro lá na frente. Deu pra sentir essa coisa de lentes deformatórias, sobretudo as bifocais – o De Palma é o grande mestre em usar isso, ele bota o cara em primeiro plano e tem outro lá atrás em foco, como tinha em Cidadão Kane. Por conta de preparar a minha “cinemateca”, vou ter que comprar outro HD, cada vez tem menos espaço, já tive que apagar uma pasta inteira de mais de setenta filmes para poder abrir espaço – o intuito é de continuar mantendo esse material de pesquisa na mão, porque pode ser que algum dia se torna viável fazer o Cinema interditato.

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