Entrevista com Carlos Reichenbach – Parte 6

Dossiê Carlos Reichenbach

Entrevista com Carlos Reichenbach

Parte 6: Sobre fazer cinema no Brasil

Por Gabriel Carneiro e Filipe Chamy

Fotos: Laís Clemente

Zingu! – Por que Filme Demência é seu filme favorito entre os que você fez?

Carlos Reichenbach – Talvez por isso, um filme que deu tanto problema. Difícil dizer, é uma viagem tão pessoal… É a história de uma viagem e é uma viagem muito pessoal na minha vida. É um filme niilista. É talvez o filme no qual mais me enxergo, há tanta coisa minha lá dentro. Acho que, ao mesmo tempo, ele tem isso e tem aquele sopro de liberdade na forma que foi feito, como Lilian M. e O império do desejo, que talvez sejam os três filmes mais livres que fiz. Consigo identificar com clareza o vértice de Dois Córregos, de Alma Corsária. Mas não consigo saber por que fui filmar Filme demência, Lilian M. Saíram das tripas, do estômago. Falei que queria fazer filme para mim, eu entendi e acabou. Com o tempo você acha o interlocutor. Por isso sempre vale a pena o exercício de liberdade. Acho inclusive que cada vez vale mais. Agora, antes de mais nada, vou fazer um filme pra mim. Aí estranham, acham que virei religioso, místico. Que se dane, fiz o filme pra mim. Fiz um curta-metragem chamado Equilíbrio e graça que é um pouco o rascunho desse filme. Quero fazer um filme chamado Anjo Desarticulado. Só não está filmado porque não me dei por satisfeito com o que eu pesquisei, o material que tenho na mão. Mas uma hora vou ter que dar uma basta e mandar bala, não tem jeito, inclusive minha sócia, amigos e pessoas envolvidas no trabalho me cobram. Mas basicamente o desencanto foi tão grande com meus últimos dois filmes.

Z – Por que desencanto?

CR – Porque não deixam chegar ao público-alvo, aos protagonistas. Começou com Garotas do ABC. Na primeira semana em São Bernardo, onde o filme foi feito, duzentos dos quatrocentos figurantes não foram ver o filme. Foram ver X-Men, um filme que passava mais em cinema de shopping. Não tem essa conversa de cinema popular, eles não te deixam ter acesso. O filme só vai crescer se passar na televisão ou for vendido genericamente a cinco reais na rua. Vamos definir: o mercado tal como está deformado hoje, só justifica a existência de um tipo de produção. Ou produção absolutamente independente, em que filmar custa pouco, e uma cópia consegue suprir isso. Os filmes que são modelares atualmente são os do Eduardo Coutinho. Juízo, por exemplo, para estudantes de direito e advogados. É um filme dirigido. Você está entendendo o que eu quero dizer? Pode não concordar, mas entende? Esse filme vai ser alcançado. Ou se justifica isso ou o filme vai ser totalmente experimental, se entrar com uma ou duas cópias, tanto faz, ninguém vai ver mesmo. Agora, filme popular, ser sucata da TV Globo? Eu não entro nessa conversa, sinto muito. Aquilo não vai abrir portas para mim. Eu fico meio chocado quando colegas me dizem: “Ah, mas o Se eu fosse você 2 abre portas”; abre portas é para a TV Globo, para mim não abre porta nenhuma, está é fechando cada vez mais! Nada contra, isso não deve deixar de existir, não vou defender uma coisa autoritária. Mas tudo tem que existir para todo mundo! O comandante Marcos que dizia: “para todos, tudo”. Só faltava agora a produção modelar ser esse subproduto da TV, um filme dirigido, teleguiado. Acrescenta algo, traz alguma coisa?

Z – O que você acha de filmes como Cidade de Deus, Tropa de elite?

CR – São um pouco de exceção. Existe uma explicação lógica para isso. Eu digo a você qual vai ser o próximo recordista de bilheteria do ano que vem. O filme da Bruna Surfistinha. O único cheque visado de produção no mundo inteiro é o best seller, não tem furo. Quando saiu o livro dessa menina, falei pra minha sócia para comprarmos os direitos dessa porra, produzir e ficar ricos. Não tem erro, apesar de terem demorado demais para fazer.

Z – Até hoje estão escolhendo elenco, essas coisas. [a entrevista foi feita no final de agosto]

CR – Vai chegar com atraso demais. Veja, Carandiru, Cazuza, Cidade de Deus.. Best seller não tem furo. Anjos e demônios, seja o que for, pode ser uma bosta, como é O código da Vinci, mas o filme já se pagou no lançamento. É fácil você detectar esse cheque visado. É a única coisa que não dá errado. Tem que existir, são os nossos fenômenos. Fenômeno no mundo inteiro, na França, na Itália. O cinema italiano está uma merda, mas filmou um livro de ponta, que é o Gomorra. Independentemente de o filme ser bom ou não, é um recorde de bilheteria na Itália. Ótimo, é isso que dá mais dinheiro atualmente no mundo. Sorte que o filme é bom, ainda bem que o diretor é bom, mas é carta marcada. É a única coisa que dá certo em cinema no mundo. Posso até citar exemplos pontuais, aqui a gente vê muito subproduto da TV, Os normais 2. Se isso é o nosso portfólio, sinto muito. O que me dá tristeza é que não se consegue chegar ao público alvo. Aqui entre nós, Falsa loura e Garotas do ABC não visam ao público burguês. Eles pouco se lixando pra problemas de operárias têxteis, querem mais é que se fodam. Vi comentários do pessoal que viu no Rio de Janeiro e ficava torcendo o nariz. Não tem mais isso de cultura popular. O freqüentador do cinema do shopping da Barra, ou mesmo aqui, nos Villa-Lobos da vida, Bourbon que seja. Esse cara não vai ver Maurício Mattar, vai torcer o nariz por puro pedantismo. Uma coisa que volte à chanchada, vai torcer também, como torcia antigamente.

Z – Você acha que por isso o filme do Mojica ano passado foi um fracasso de bilheteria, por exemplo?

CR – Ah, na certa. Também foi uma estratégia um pouco equivocada. É um filme que tem o público dele, deveria ser passado a esse público. Acho que se imaginava que esse gosto pelo trash, pelo cinema extremo, estivesse mais expandido. Mas era só ver as reações lá dentro, um público pequeno, seleto. E o resto, uma carga de preconceito enorme. Não é o mesmo público que vai ver A bruxa de Blair. O público que vê o Silvio Santos, a Record, não vai mais ao cinema mesmo. A última grande e boa experiência que tive, volto a repetir, a maior perda do cinema brasileiro, foi a parceria com a TV Cultura. Eu tive um infarto nessa época, mas falo para você que foi o melhor sócio que já tive. Em todos os sentidos. O maior parceiro e o maior sócio. Fiz o filme que eu quis, do jeito que quis. Tudo nas datas previstas, não precisava puxar o saco de ninguém. Era o dinheiro a que eu tinha direito, assinou-se o contrato, o projeto foi aprovado e cumprido à risca. Em momento nenhum apareceu um enviado da TV Cultura falando para trocar tal música, cortar tal cena. Isso eu não admitiria. Por isso não faria filme com a TV Globo, não tenho interesse, prefiro mudar de profissão. Larguei de publicidade por causa disso. Gente que trabalha em outro nível, tirando a azeitona da sua empada. Ah, vai se foder! Acho asqueroso saber que alguém se sujeita a isso, desculpem os colegas, mas para mim perde a moral. A única moral do autor é sua liberdade, sua dignidade. Vendê-las ao diabo, mas tire o nome antes, como os grandes fazem. Fale que não vai assinar a merda se ela continuar assim. Pois é por isso que digo que o melhor parceiro que tive foi a TV Cultura, com quem fiz Dois Córregos e Garotas do ABC. Se eu tive que cortar quarenta minutos do Garotas do ABC não foi por causa da TV Cultura, não, mas pelos fakes sócios estrangeiros, italianos que iam entrar no filme. Se arrependimento matasse, eu estaria morto. Minha sócia diz que o filme tem um problema, é um dos meus melhores filmes, de longe, mas tem o problema de excesso de interferência.

Z – Por que você não faz uma “versão do diretor”?

CR – Ninguém vai ter dinheiro para fazer isso. Já era. Vai ficar com a cópia pirata. Quando fiz Dois Córregos, o filme foi feito como ele foi imaginado, da melhor forma possível, tudo cumprido à risca. No lançamento, eles divulgaram muito bem, e foi um dos filmes que mais passaram na TV Cultura. Eles têm direito, eles que fizeram. Mais de dois milhões de espectadores cada vez que passa. Um taxista amigo meu já falou comigo que viu inteiro o filme na TV, a moça da banca de jornal… Finalmente o filme chega a quem ele se destina, com quem ele tem que dialogar, o que não consigo mais na sala de cinema. É deprimente. Daí vem a decisão de não fazer mais filme que tenha linguagem popular. Porque ninguém vai ver mesmo, meia dúzia de privilegiados vão ver. Aí acaba virando uma obrigação de se ver.

Z – Vira uma coisa meio de nicho.

CR – Mas que se dane! Se querem condenar o cinema brasileiro a gueto, que vire gueto, então! Há dois caminhos. Ou você fala que seu projeto de vida é fazer subprodutos da televisão, que você quer virar diretor da TV Globo – tem gente que tem esse projeto de vida, me desculpe; acho que há coisas mais interessantes, mas isso é pessoal para cada um. Só não desisti mesmo por insistência dos parceiros. Eu queria me dedicar ao que eu realmente desejo, se eu pudesse “fechar a loja” – pagar todas as dívidas –, ia para encontro dos rios e ficaria numa casa escrevendo. Evita o problema limitador do cinema, porque a gente limita, sabe as limitações que vai ter em cada filme. Já sei as limitações do meu próximo filme, trabalhamos em cima delas. Não vou invadir terrenos sagrados, coisas espíritas, é um filme sobre fé. Para não chegar aí, é melhor dialogar com pouca gente mesmo. Vão ter que me engolir, não falar que eu abandonei o caminho popular, que aí eu mando à merda! Sempre falam as coisas mais esdrúxulas possíveis, e você não pode ficar suscetível ao que mandam você fazer. Já vou meio por aí nos meus curtas-metragens, um caminho mais conceitual. Quando eu tiver uma co-produção de quatro países, com equipe reduzida, vou fazer um filme caríssimo. É para pouca gente mesmo. De repente vira um filme de alta comunicação, nunca se sabe, não sou eu que determino. Pode ser que caia nas graças de um distribuidor, mas a preocupação não é mais essa. Já encerrei a fase ABC, há mais dois roteiros de que desisti, estou desencantado, limitaram ainda mais o nosso poder de comunicação. Especialmente o mercado exibidor, que cada vez entendo menos.

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