Dossiê Carlos Reichenbach
Entrevista com Carlos Reichenbach
Parte 5: As pornochanchadas
Por Gabriel Carneiro e Filipe Chamy
Fotos: Laís Clemente
Zingu! – Como você voltou a trabalhar na Boca?
Carlos Reichenbach – Por conta de Lilian M. e da minha saída da Jota Filmes, alguns clientes com quem eu fazia filme quiseram continuar, pediram para eu fazer. Tinha um criador de uma espécie de agência, o Shopping News, diário de comércio e indústria, e um ex-aluno que tinha umas contas da Azougue, e eu falei: “Tudo bem!”. Falei com um amigo, Percival Gomes de Oliveira que trabalhava na Linx Filmes, que uns caras queriam continuar trabalhando para mim, ia levá-los para a Linx Filmes. Porque quem aprovava o orçamento era eu, quem dava a palavra final era eu mesmo. Era um ótimo negócio para eles, porque não ia ter um chato falando a toda hora para refilmar; eu nunca gostei de filmar mais de três vezes a mesma coisa. Foi ótimo, porque o cara era pessoa de confiança, e eu nunca consegui filmar três vezes a mesma coisa, a menos que desse problema técnico. Aí começaram a me chamar para fotografar, acho que o primeiro foi o meu amigo Jean Garret mesmo. O Jean havia trabalhado com o José Mojica Marins, a gente se conheceu lá no estúdio mesmo. Ele tinha uma idéia de fazer fotonovela, e me perguntou se eu queria fazer uma fotonovela de ator lá dentro (risos), no estúdio. Ele experimentava muito essa coisa de angulação, a gente discutia muito fotografia, qual o diafragma etc. Um dia ele me chamou para fotografar e eu fui, a gente fez um filme atrás do outro, teve muito aprendizado de trabalhar no estúdio, o hábito de fotografar muito. O Galante veio conversar se eu topava fazer um filme assim, aí veio A Ilha dos prazeres proibidos e uma série de outras coisas. Quando ele me chamou, topei na hora, repetir a experiência em Corrida em busca do amor. Trabalhar o repertório do filme popular. A base para fazer isso foi um livrinho que vendia para cacete em bancas de jornal, uma agente secreta que transava com Deus e o mundo. Vendia como água. Não lembro o nome da personagem.
Z – Não era Ilsa?
CR – Não, Ilsa não era de livros, mas de filmes. Eu desconfio que não era nem estrangeiro, mas tradução de um fenômeno de literatura popular na França, uma espiã francesa. Comprei dois livrinhos desse, e a gente fez um roteiro que era todo meio calcado nesse tipo de aventura mesmo. Tinha também aquela brincadeira com aquele personagem que o Godard inventou, o Lemmy Caution, espião em Alphaville. A espiã era de extrema direita e contratada para matar dois refugiados políticos numa ilha. A idéia era mexer com caixa de marimbondo. Eu não podia falar isso pra ninguém! (risos) Escrevi e mostrei pra ele, “que tal?”, A ilha dos extremos, dos prazeres extremos, então juntou com o filme do Rogério, que fala da “ilha dos prazeres extremos”, e acabamos tirando “extremos” do nome, ficou só A ilha dos prazeres. O filme foi feito; ‘será que a censura vai entender a segunda leitura do filme?’ Porque o poema passou a integrar o filme, que fez sucesso na América Latina toda. Já recebi aqui um crítico de cinema chileno, que era editor de uma espécie de Istoé chilena, ou é ainda, não sei. Ele se chama Ascanio Cavalo, publicou livros, inclusive. Ele falou que queria meu telefone, para falar especificamente sobre um filme, A ilha dos prazeres proibidos. Quase caí de quatro, o cara botou o filme numa lista como um dos maiores filmes da História. Porque aconteceu uma situação parecida no país dele, e ele me perguntou: “Você está falando de prisioneiros políticos, não?” E disse que claro, em nenhum momento foi dito que não, mas era tudo metafórico, meio debochado, carnavalizado, etc. Mas muita gente no estúdio entendeu, e acho que a grande chave do filme foi ter usado muita música andina. Como não podia falar abertamente: “Isto é Brasil”, precisávamos localizar a ilha, falar que ela era em qualquer lugar da América Latina, então taca música da Bolívia, Uruguai, Chile, do Peru, pode até ser do Equador! A situação é parecida, republiquetas parecidas. O filme fez na América Latina quase cinco milhões de espectadores, foi sucesso na Argentina, no México, no Peru, mesmo cortado – em cada país foi cortado em um local diferente. Mas aí provou que valia a pena arriscar, em algum lugar alguém vai entender. Uma vez em Lilian M. eu encontrei um cara que passou pelas mãos do Boilesen e ele me perguntou: “Aquele personagem do alemão é inspirado no Boilesen, não?” Ainda bem que a censura não entendeu isso na época! Pode ser que não entendam isso, mas que o chileno soube fazer a leitura imediata da coisa, soube! Com o sucesso de bilheteria de A ilha dos prazeres proibidos, o Galante disse que agora tinha mais condições, inclusive para produzir o filho dele, Roberto Galante.
Z – Você gostava de fazer as chamadas “pornochanchadas”?
CR – Eu gostava muito, era uma forma de liberdade, ir mais longe com essa experiência da carnavalização, de trabalhar o clichê. E, por outro lado, arriscar e falar de coisas em que a censura estava de olho. Evidentemente, A ilha… é um filme mais genérico nesse sentido, mas fala de personagens políticos, repressão. O império dos desejos tinha discurso ideológico, até a frase “A propriedade é um roubo”. Falaram que era filme comunista, que tinha até frase do Marx. Mas não era do Marx, era do Proudhon! Ele só não sabia que era muito mais ardido que o Marx! (risos) O importante era usar aquele manancial, me davam X negativos, tantas semanas de filmagem, aí tinha que fazer tudo sozinho, cuidar para que a produção não falhasse…
Z – Mas você continua utilizando elementos, como a nudez, não?
CR – Mas, para mim, o uso é essencialmente político, desde o primeiro filme. A minha formação sempre foi essa, a coisa passa por um processo pessoal e você não pensa em transformação se não atua na área do desejo. Não consigo separar o desejo da política. Nunca. Por isso a leitura era dupla. Para alguns, era um filme político. Em O império do desejo, a questão do desejo é eminentemente política. Aí quando bate na censura, o filme faz literalmente a defesa do sexo privado. Faz referência do direito ao desejo, o tempo inteiro. Por isso é talvez o filme mais político que eu já fiz, uma defesa absoluta da liberdade. Não por menos, acho que fui o único brasileiro, mesmo sem cópia legendada – o produtor não liberou o filme – que fui convidado oficialmente para o Festival de Cinema Anarquista de Melbourne, na Austrália, e o de Lyon, na França. O produtor deve ter pensado que não ia conseguir vender o filme, como A prisão, do Oswaldo Oliveira, que é mais visto na Bélgica que no Brasil. Eu tenho uma cópia do filme falado em alemão!
Z – Eu tenho uma em inglês [fala Gabriel].
CR – A versão alemã é mais ardida ainda. (risos) De qualquer modo, essa questão foi buscada desde o início. Quando o filme deu certo, com mais condições, falei: “Vou botar pra quebrar”. Agora estava liberado, para tratar essa questão do desejo de forma explícita. Acho que os elementos da dramaturgia pessoal de cada um são meio irretocáveis, faz parte da sua personalidade a forma de enxergar politicamente o mundo; para mim, a questão do desejo vai ser sempre importante. Até em Corrida… tem sensualidade, uma coisa interna, o filme lida com essa questão, quebrar regras a cada minuto. Uma celebração da algazarra, a regra é o ponto que mais incomoda, em todos os sentidos: formalmente, “conteudisticamente”. Gosto muito de trabalhar a narrativa, mas se o tema não é isso. Vejo um filme como O Paraíso proibido – minha mulher diz que é o filme mais parecido comigo, ela me conhece melhor que ninguém, talvez –, é o meu filme mais careta, mais estruturalmente comportado, sobre um cara mal comportado, à deriva, existencialmente falando. Porque o tema é esse. O tema já é “estar deslocado existencialmente no mundo”, a história do cara que rompe com a família, vai para o litoral ganhar uma merda, vive uma vida medíocre, mas não aceita mais as regras do jogo. Chega um amigo de velha data, que tenta trazê-lo de volta ao mundo dos normais, as pessoas situadas socialmente. E o tempo todo é uma briga, ele não perdeu o amigo e ao mesmo tempo tenta manter sua individualidade. Já me falaram que é o filme mais misógino que fiz, porque rompe com a família, com a amante, rompe com a puta que pariu! Mas o filme partia de uma frase do Carlos Drummond de Andrade, que é “o direito a fazer porra nenhuma”, uma pessoa tem direito ao ócio; é um direito inalienável do ser humano, não querer pensar no futuro. Talvez meu filme mais angustiado até hoje.
Z – A angústia é um tema recorrente nos seus filmes.
CR – São todos temas recorrentes, a questão do desejo, da angústia, da deriva.
Z – Vejo mais isso nos seus chamados filmes mais “pessoais”, como Filme demência, Alma corsária, Dois Córregos.
CR – Sim, cada filme no fundo tem um contingente autobiográfico, sobretudo esses três filmes têm coisas da minha vida lá dentro. Alma corsária nem se fala, Dois Córregos é um filme ultrapessoal. Embora aparentemente comportado, se inspira na minha vivência, meu padrinho de batismo. Filme demência, então, é quase um acerto de contas com o pai que eu perdi.