Dossiê Carlos Reichenbach
Entrevista com Carlos Reichenbach
Parte 3: Boca do Lixo
Por Gabriel Carneiro e Filipe Chamy
Fotos: Laís Clemente
Zingu! – Como foi parar na Boca?
CR – Quando eu e Callegaro saímos da São Luis, fomos atrás de onde se fazia cinema em São Paulo. Na Boca do Lixo? Então é para lá que a gente ia. Claro que, para ser aceito, para entrar lá dentro, não foi fácil não. Era uma época meio beatnik, eu tinha um cabelo comprido, andava de sandálias Havaianas. A primeira vez que e o Callegaro tentamos ir ao escritório do Galante, ele proibiu nossa entrada. Falou para “barrar esses dois maconheiros daqui de dentro”. Depois ficamos amigos. (risos) Mas o primeiro impacto foi que hippies estavam invadindo a Boca.
Z – Como era a Boca na época?
CR – Era o cento da distribuição. Por uma razão muito simples, a Boca era circundada pela Estação Rodoviária, pela estação da Luz e pela Estação Sorocabana. Os filmes naquela época eram transportados em latas de 300 metros de filme, pesadíssimas, e tinha aqueles carrinhos de madeira em que os caras saíam da Boca e iam para as estações. Não tem nada romântico, por ficar perto da prostituição, era uma questão muito prática. Por isso que os distribuidores ficavam lá. Era a forma de esses filmes trafegarem pelo Brasil. Dificilmente um filme pegava o avião, para começar, porque era mais difícil de pagar do que o trem. O Romantismo acaba aí, na praticidade da coisa. Por conta disso, as produtoras também foram se sediando por lá. A primeira vez que eu fui levado à Boca foi porque o próprio Person tinha um escritório lá. Tinha um produtor chamado Mario Civelli, que tinha vivido na Itália, amigo do Person, e fomos levados para lá. Foi nosso primeiro contato. Íamos pegar equipamento. Tinha determinados pontos lá dentro que você ia achar os técnicos. É possível dizer que o cinema daquela época, antes mesmo do Soberano, da Boca do Lixo, se centralizava em três pontos: no Bar Costa do Sol, na rua Sete de Abril; na Bento Freitas, onde se alugava equipamento e os técnicos ficavam esperando trabalho; e na rua do Triumpho. Esse termo que nenhum integrante gosta de usar, que é o Cinema Marginal, nasce, de certa forma, num percurso que ocupa a Escola São Luis, o Cine Belas Artes – onde tinha a sala da Cinemateca -, o Ponto Quatro e o Riviera. Existia um tráfego lá, mesmo de pessoas que não praticavam o cinema, mas que tinham contato e estudavam. Mesmo quem não era aluno da São Luis, freqüentava os corredores da escola. O Candeias, o Rogério Sganzerla, não eram alunos de lá. De certa maneira, essa convivência nasceu dentro um espaço físico. Saí da São Luis, e ia ou para o Belas Artes, em sessões fechadas, ou ia para o Ponto Quatro, que era um bar que ficava na frente do Belas Artes, ou para o Riviera. Era o mundinho que pensava o cinema na época; eu não tenho a menor dúvida de que o futuro Cinema Marginal nasceu nesse quadrilátero. São pessoas que saíram desse convívio e foram para a Boca, porque é lá que achavam parcerias.
Z – O que você acha desse vínculo seu ao chamado Cinema Marginal? Você concorda? Aceita o rótulo?
CR – Nós não gostamos desse rótulo. Ele tinha encanto naquela época, hoje não tem. Percebe-se hoje, nitidamente, que é usado até num sentido pejorativo. Vai tentar entrevistar o Julio Bressane e falar em Cinema Marginal que ele bate o telefone na cara. O termo tinha sentido na época em que aquilo era feito. Até a palavra malandro mudou muito. Antes tinha uma coisa do bem-viver, do cara gentil. Hoje malandro é filho-da-puta, assassino, bárbaro. Marginal hoje é pejorativo, nada mais do “seja bandido, seja herói”, como era na imagem dos anos 60. Acho que essa é a diferença. Eu não quero ser bandido. Tomou um tom fascista até. Hoje é difícil entender. A palavra marginal, sentido de bandido na época, era de esquerda; hoje é de direita. Eu me nego ter meu nome vinculado a esse termo. As pessoas continuaram, o cinema mudou, os nossos protagonistas mudaram. Qual é basicamente a diferença essencial entre o Cinema Novo e o Cinema Pós-Novo: após 1964, se trocou aquele rótulo romântico. Qual a imagem que se tem do Cinema Novo? É aquele cinema simulado, com teor subversivo, em que os personagens eram favelados, retirantes, miseráveis, excluídos sociais. O cinema era usado como uma arma política. Com a passagem para a minha geração, desiludida, há uma troca da subversão para a transgressão. Ao invés do favelado, o personagem é o bandido, o boçal, o esfarrapado, o ignorante, o rebelde sem causa – troca o rebelde com causa pelo sem. É uma diferença brutal. Aquele ideário mudou, não é a mesma imagem de hoje. Por isso que eu acho que a melhor expressão foi a que os ingleses inventaram: Cinema Pós-Novo. Ele é uma resposta ao Cinema Novo, de uma certa forma. Ao invés de minhas certezas, eu te proponho as minhas dúvidas. A frase icônica de 68 é “eu não sei o que eu quero, eu sei o que eu não quero.” A síntese está aí. E hoje, sinceramente, não quero ser chamado de marginal. Quer me chamar de independente, de porra louca (risos), do que você quiser, mas não de marginal. Ela perdeu o vinculo, está pejorativa, não existe mais “romantismo” em ser marginal. Hoje ele é o cara que está interessado no poder. Não quero essa imagem não. Esse cinema nasce a partir de 1966/67, que sai da São Luis, ou que saem da vida mesmo – como os cineastas José Mojica Marins, Ozualdo Candeias e tantos outros, que aprendem na prática. No fundo, a gente sai da São Luis para ser autodidata. Eu, Callegaro, sei lá quem mais saiu, foi para a prática. Imagina o cara que queria ser roteirista, e no primeiro dia de filmagem, joga o roteiro fora. ‘Vou improvisar tudo porque não está tendo condições de filmar o que está no papel.’ Foi a primeira lição aprendida na prática. Aí começou outra etapa. Eu não gosto dos filmes que eu fiz naquela época, eu não gosto de nada. Mesmo porque, para mim, estava um pouco tateando ainda. De certa forma, fui empurrado para dirigir um documentário que eu não queria fazer.
Z – Mas não tem nada que você goste nos primeiros filmes?
CR – Tem uma coisa ou outra, mas não gosto daqueles filmes.
Z – E do Corrida em Busca do Amor?
CR – Aí é diferente. Porque aí a lição já tinha sido aprendida de certa forma. O fato de aprender a trabalhar na adversidade, sem condições, se tornou um estímulo. Quando fui chamado para fazer Corrida em Busca do Amor, primeiro estranhei, porque corrida de automóveis era uma coisa que abominava. Nunca tinha ido a Interlagos. Qual era a intenção? O produtor do filme, o Renato Grecchi, queria nitidamente um filme que fosse na esteira do sucesso Roberto Carlos em Ritmo de Aventura. Enquanto este buscava copiar ou imitar – sem ser uma crítica – Os Reis do Iê-iê-iê, do Richard Lester, usar a linguagem do cinema publicitário para o filme – ele traz o que há de melhor na influência do cinema publicitário, uma coisa extremamente anárquica, non-sense -, aquele era uma comédia juvenil. Não vou contar o histórico inteiro, porque ele é muito longo – era para ser com o Ronnie Von, não é, etc. Quando percebi que tinha um filme de corrida de automóveis que mal tinha carro para correr, pensei: “ele quer uma comédia juvenil, vamos então à gênese da chanchada”. Aquilo que o Paulo Emilio, de quem havia sido aluno, já nos havia ensinado. O Brasil tem uma absoluta incapacidade – e isso é um elogio – de copiar. Ou ele faz uma coisa nova, ou ele brinca. Esse é o mérito da chanchada, essa incapacidade de copiar. Aí você avacalha. Matar ou Morrer vira Matar ou Correr, Sansão e Dalila vira Nem Sansão nem Dalila. Bagunça coreto. Logo depois vem a influência oswaldiana, a antropofagia, essa coisa toda que nós aprendemos da cultura popular americana – nós engolimos e vomitamos do nosso jeito, para não falar outra coisa mais feia. Na época que fui fazer, em 1970, Corrida em Busca do Amor, já tinha influência das vanguardas de 68: o desbunde e especialmente a antropofagia. Peguei meus dois assistentes, Jairo Ferreira e Percival Gomes de Oliveira, e falei para revermos todos os filmes de Sandra Dee, Annette Funicello, Frankie Avalon, filmes de juventude, de corrida de automóveis, de praia, de surf, e vamos fazer uma salada russa, abrasileirar essa porra, e trabalhar com os clichês. Com todas as dificuldades – ele começou com o mínimo de produção e terminou com porra nenhuma: “o que tem de carro? Uma ambulância, bota a ambulância em cena”. Qualquer carro que caísse em nossa mão, a gente filmava. Por sorte, todo esse material foi cair na mão de um gênio, chamado Sylvio Renoldi. Quando ele viu todo o material, falou: “que porra-louquice é essa?”. Ele ajudou enlouquecer junto, não tínhamos compromisso nenhum com o realismo. Só tínhamos que organizar a baderna. O maior elogio que o filme poderia ter recebido foi quando disseram que “o filme é uma celebração da algazarra”. Porque é uma porra-louquice sem fim. No filme, cada um vai para um lado, quem chega primeiro é a ambulância (risos). Tem um acidente no meio do caminho, o outro vai pro outro lado, o outro explode, ao entrar num terreno minado. O filme celebra a algazarra. O que importa é o prazer, é a anarquia, é a celebração da anarquia.
Z – Desse filme você já gosta?
CR – Eu adoro esse filme, com todas as dificuldades, é um filme tosco, eu adoro. No fundo, aquelas idéias iniciais, o desejo inicial, foram se afinando, foram se definindo, sem que eu percebesse, nada muito pensado de forma cerebral. Era improvisado cotidianamente. A gente começou filmando em Amparo, foi mandado embora porque a nossa própria produção não pagou hotel; de repente saímos de um buraco lá, de uma casa só com um colchão lá dentro, para um hotel cinco estrelas em Serra Negra, no meio do processo, porque não parou, o produtor foi buscando coisas. Ele falava assim: “Ah, agora consegui tal coisa”, e eu (risos): “Amanhã o que nós temos para filmar?”, “Tem um carro da produção, um Volkswagen”. “Então põe na Corrida”, tem que filmar, estava lá para fazer o quê? Mas foi uma experiência aprender a trabalhar sem condições, e era muito louco, porque você bota assim uma idéia, o que o cara queria fazer? Ele tinha comprado negativo do Paraguai, um negativo que a Kodak do Brasil não vendia. Era um negativo daylight que não existia no Brasil. Trouxe uma coisa contrabandeada, evidentemente, o negativo parecia cromo, não podia errar o diafragma, o coitado do fotógrafo tinha que trabalhar no talo. Quando tinha alguns interiores, ele conseguiu alguns negativos na Kodak normal. Mas não se tinha a mínima noção da procedência do negativo de exteriores lá dentro. O cara pegou uma Kombi, foi pro Paraguai e comprou um negativo lá. A gente só examinou se não estava vencido etc. e mandou bala. Então já tinha esse espírito, mais experimental impossível, em todos os sentidos. E o filme foi feito. Milagre da natureza, ele foi feito. Aconteceu um fenômeno muito engraçado nesse filme. Quando acabou, qual o público alvo desse filme? Crianças, loucos… Eu sempre dizia que era o filme ideal para ser exibido em sanatórios, em hospícios etc., porque é a celebração do nonsense. Aí aconteceu uma coisa muita engraçada, um filme feito, de qualquer forma, para as crianças, e aceitam uma proposta de um grande distribuidor e lançam o filme em setembro. Os caras são loucos, você está ferrado, lançar um filme de férias em setembro? Claro que o filme ficou uma semana em cartaz. Mas aconteceu um fenômeno muito engraçado, olha que coisa maluca: existiam uns filmes num cinema em São Paulo, que é o Cine Comodoro, onde passava filme Cinerama, em 70 mm, tela larguíssima… Tinha acabado de estrear Os dez mandamentos, até eu fui lá ver, aquela tela gigantesca. Aliás, (risos) fui ao cinema umas quinhentas vezes para ver um dos meus guilty pleasures, e do Martin Scorsese também. O Cine Comodoro era um cinema esquisito pra cacete, tinha três telas numa sala só, o projetor ficava no meio. Não importa onde você sentasse, você via o filme. O cara conseguiu um filme pra passar, O farol no fim do mundo, por exemplo, exibia e depois ninguém queria mais passar o filme! Ele tinha uma sala aqui e uma em Brasília. O farol no fim do mundo ficou dois, três anos em cartaz. Depois não tinha mais o que exibir, ninguém queria exibir filme brasileiro lá. Aí lançou Os dez mandamentos, e o cara não tinha filme, falei assim: “Escuta, você não quer deixar passar esse filme que não deu certo no Cine Olido, Corrida em busca do amor?”, isso durante as férias. O produtor, Renato Grecchi, deu a cópia para o dono do Cine Espacial. O que aconteceu? Uma fila gigantesca pra assistir a Os dez mandamentos; metade não conseguia entrar, atravessava a rua e ia assistir a Corrida em busca do amor (risos)! O filme ficou três meses e meio em cartaz, com sala cheia, roubando o público excedente de Os dez mandamentos. Mas como foi durante as férias, o filme acabou se pagando, acabou sendo um sucesso, por causa da vazante de Os dez mandamentos. Acho que foi a mesma coisa em Brasília, o filme rodava como uma resposta alternativa ao sucesso do outro filme! Aí fez um público fantástico, foi depois exibido na TV Record. Após esse filme, abandonei o cinema de ficção e fui ser sócio numa produtora de publicidade. Foi o período mais traumático da minha vida.