Entrevista com Carlos Reichenbach – Parte 2

Dossiê Carlos Reichenbach

Entrevista com Carlos Reichenbach

Parte 2: O interesse pelo cinema

Por Gabriel Carneiro e Filipe Chamy

Fotos: Laís Clemente

Zingu! – Quando surgiu a idéia de cursar cinema na São Luis?

Carlos Reichenbach – Antes de ir para a São Luis, existiam alguns cursos de cinema. No ano [1965] em que eu prestei vestibular, o fiz em três lugares (na São Francisco, na USP Neolatinas e na São Luis). Um ano antes nem pensava em entrar na São Luis, mas eu tinha muita amizade com o João Callegaro, aluno da primeira turma, que falava que lá era legal pra cacete. Tinha um grupo que sempre se encontrava, o Callegaro, o Rogério Sganzerla, o crítico Antonio Lima. Estávamos sempre nas mesmas sessões, nos mesmos cinema, sempre se encontrando nos bares. Ele que me falou para prestar na São Luis: “Você não vai prestar vestibular? Vai fazer São Francisco? Você é louco?” Quando eu prestei vestibular na São Francisco, aconteceu uma coisa muito engraçada. Naquela época, a prova mais importante era a de dissertação. Era um assunto atual associado a alguma coisa. Não tinha como se preparar. Equivalia a 70% da sua nota. No ano anterior tinha sido qualquer coisa sobre petróleo, aqueles assuntos malucos. Quando fui fazer a prova, o tema que peguei foi: Cinema Novo brasileiro. “Não é aqui que eu vou ficar, o sinal está dado”, pensei. Evidentemente, fiz um tratado. Já conhecia, tinha acompanhado um ciclo no MAM, com debates, e pessoas ligadas – acho que a primeira vez que vi o Glauber foi nessa mostra. Minha mãe em vida nunca soube que eu passei na São Francisco. Não tive coragem de dizer. ‘O sinal estava dado, não é aqui eu que vou ficar’, pensei. (risos) Como eu passei na São Luis, fui para lá. Nessa época, eu era tecladista de um grupo musical chamado TNT 3. Se tivesse um contrabaixo, era TNT 4, se tivesse um sax, era TNT 5. Ganhávamos uma grana tocando em desfile de moda, em clube de campo, todo fim de semana. Isso deu para segurar o tranco, porque a São Luis era paga. De certa forma, música sustentou meu aprendizado de cinema.

Z – Como era a escola?

CR- A São Luis foi decisiva, para mim, por conta de um norteamento essencial de um professor chamado Luis Sérgio Person, que era o responsável pela minha turma. Ele botou na cabeça que eu tinha que ser diretor, e resolveu produzir um curta-metragem, com sobra de negativos, que é o Esta Rua Tão Augusta. Ele falava: “esse cara tem que dirigir!”. E eu: “por que você insiste que eu quero dirigir?” (risos) “Ô, Person, eu tenho problema de lidar com gente, eu sou tímido pra cacete, eu gosto de trabalhar só dentro de quatro paredes”. Ele falava que eu tinha jeito e me punha para ir pra rua. Ele era uma figura bem interessante, bastante paternal e passional também. Antes disso, já havia feito alguns cursos de cinema, não só por interesse com história do cinema mesmo – eu já havia sido aluno do Paulo Emílio Salles Gomes antes, num curso do MAM, do Diários Associados, na Rua Sete de Abril, sobre cinema brasileiro; tive aula com o Francisco Luis Almeida Salles -, acompanhei uma mostra gigantesca do cinema expressionista, russo. A formação cinéfila já vinha do hábito de acompanhar cinema desde muito cedo. Eu ia ao Cine Mundi, na praça do Sé, onde passava três filmes, e o cinema tinha um poste no meio – nunca vi cinema com dois postes no meio, e tinha cara que ia lá para dormir (risos). Volto a repetir: muitas vezes ia ao cinema de bairro para ver filmes censurados para 18 anos. Quando eu tinha 14, ia aos de 16; quando 16, aos de 18. Eu era sempre maior do que parecia. Quando eu vim morar aqui, no bairro [Higienópolis], comecei a freqüentar muito mais o centro da cidade. Uma coisa importante é que no começo dos anos 60, principalmente em 65, quando estava entrando na São Luis, me interessei muito cedo por cultura japonesa; muito por influência dos meus pais que se interessavam bastante pelo tema, foi uma coisa quase herdada. Eles foram para o Japão e para o Oriente, na década de 50, tanto que eu usei esse material que meu pai filmou em Alma Corsária. Meu pai viajou com minha mãe na década de 50, deu meio que uma espécie de volta ao mundo, e foi para Hong Kong, Macau, Tóquio… Numa dessas viagens, no navio, ficou amigo do Fred McMurray, e ele filmou o Fred McMurray jogando badminton com o filho, e eu usei. (gargalhando) É que pouca gente percebe que no final de Alma Corsária aparece: ‘Participação especial de Fred McMurray’. E é ele mesmo. Não podia deixar de usar essa filmagem, nem a pau. Ter um material inédito de um astro americano. (risos) Só eu e a Cristina Amaral sabemos que é ele. Foram as imagens melhores que conseguimos mesmo.

Z – Foi com essa câmera do seu pai que se interessou em fazer fotografia?

CR – Meu pai tinha uma câmera 16mm, uma Parabolex, que me fez aproximar da técnica cinematográfica. Eu comecei a lidar com a prática do cinema por causa dessa câmera. Na época que fui fazer a São Luis, fotografava os filmes dos meus amigos, porque tinha uma câmera 16, já tinha aprendido a lidar com ela, o que foi muito útil posteriormente – saber trabalhar com fotômetro, diafragma, essas coisas. Simultaneamente houve esse interesse muito grande pela cultura japonesa – o que me aproximou do cinema japonês. Por conta da amizade da minha mãe, quando fazia os cursos na Aliança Brasil-Japão, eu ia ver as sessões de cinema que tinham lá. Os filmes eram exibidos em 16mm, sem legenda, mas eram acompanhados de um folheto explicativo, escrito pelo José Fioroni Rodrigues, que, na época, era o maior especialista em cinema japonês. Entendia do tema com profundidade. Nunca vou esquecer o fato de assistido O Intendente Sansho, de Kenji Mizoguchi, sem legendas, apenas meio guiado pelo conhecimento que eu tinha da cultura e da história japonesa. Imagina o impacto de ver esse filme sem legenda – que era muito mais pela poesia da imagem do que pelo que as pessoas estavam falando. Eu sabia o que ia acontecer, porque tinha mais ou menos um guia (risos). Mexia com lenda, com sonho, imaginação, com a morte. Aquela linguagem era espetacular, minimamente imagética. O filme foi uma influência brutal. Claro, a compreensão do filme [sem entender o que dizem] é outra, mas a forma de enxergar também é outra. Outro fator importante, que me aproximou do cinema japonês, foi que meu pensamento político, desde muito cedo libertário. Me interessei muito cedo pelos pensadores anarquistas, desde os 17 anos. Para mim, era o que falava mais à minha visão de mundo. Por conta disso, fui muito impactado com toda uma geração de cinema japonês dos anos 60, de índole absolutamente libertária. As pessoas se impressionavam muito com alguns diretores, eu me lembro da crítica que falava de Kurosawa, de Tadashi Imai, comunistas notórios lá dentro. Eram cineastas importantes, mas aquilo não me falava diretamente. O que fazia isso eram os filmes do Imamura, do Sugawa – ele era um niilista, jamais foi um nazista; era muito mais anarquista do que qualquer outra coisa. Especialmente esses cineastas que lidavam com essas coisas mais poéticas, da lenda, do mito, como Mizoguchi e seu Contos da Lua Vaga, O Intendente Sansho, trabalhava aqueles elementos: a água, o barco, a morte, sempre com uma mulher de preto. Há um vértice absolutamente realista, barra-pesada, anárquico, inconformista, rebelde. Toda aquela geração vivia isso: Sugawa, Nagisa Oshima, Shohei Imamura, e Mizoguchi – um dos maiores filmes anarquistas japoneses é Eros + Massacre, do Yoshida. Se eu fosse fazer filmes, pensava, era esse tipo de cinema que me interessa.

Z – Como você absorvia as influências e colocava nos seus filmes?

CR – No começo, acho que não me preocupei muito com as influências e etc. A grande verdade, o que é muito louco, que quando fui fazer meu primeiro curta, em 16mm, Duas Cigarras  fiz um puta plano longo que não acontecia quase nada – o Eduardo Aguilar, quando viu o copião desse primeiro curta, que nunca foi montado, (risos) ele falou: “Pô, Carlão, você era mais chato que o Tarkovsky”. (gargalhando) Enterravam um cara e iam fazer um batismo, e ficava um outro lendo uma Bíblia, e um terceiro com uma garrafa de champanhe, num plano fixo. Por que as imagens eram assim? Você vai buscar, no fundo, era O Intendente Sansho, mas um O Intendente Sansho chato. (risos) Não acontecia nada, um plano fixo, tudo parado, nem surrealismo era, nem sei o que era. Acabei nunca editando esse filme, só ficaram sobras. Estava separando para usar em Alma Corsária, queria usar muita coisa antiga, não só do meu pai. Aí você me pergunta daquelas imagens paradas, que parece um stop-motion, que tinha dois caras enterrando um terceiro, tudo sem pé nem cabeça, obviamente. Não tinha explicação nenhuma (risos), era uma coisa puramente estética. Ainda bem que essa primeira fase acabou rapidinho. Quando estava montando Alma Corsária, fui dar uma entrevista para o Clodovil, e ele pediu para eu levar algumas sobras do longa em 16mm, e ele passaria para vídeo – e nessa época não se passava muita coisa para vídeo. Eles queriam um trecho do filme – era difícil para burro conseguir isso. Ele tinha um programa na TV Gazeta, e ao ver umas imagens estranhas, falou (risos): “seus filmes são todos assim, simbólicos?”, ele falou qualquer coisa assim, que deu outro significado. Eu quase retruquei (gargalhando): “é porque você não assistiu Duas Cigarras.” Isso não é nada perto do filme que eu quis fazer lá no comecinho.

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