Entrevista com Carlos Reichenbach – Parte 1

Dossiê Carlos Reichenbach

Entrevista com Carlos Reichenbach

Parte 1: Despertando para as artes

Por Gabriel Carneiro e Filipe Chamy

Fotos: Laís Clemente

Zingu! – Como surgiu o seu interesse pelo cinema?

Carlos Reichenbach – Eu descendo de uma família de editores, de industriais gráficos. Meu avô, Gustavo, veio no início do século com o sócio dele, a convite do governo brasileiro, para montar a primeira litografia no Brasil, a primeira indústria de impressão à pedra no Brasil. Ele veio com o intuito de trazer isso para o Brasil para ensinar a profissão. Meu avô, meus tios e meu pai, que era o filho mais novo, seguiram mais ou mesmo esse ramo da família. Meu pai foi o último, na verdade, mas não queria seguir isso. O irmão mais velho havia falecido, e o irmão do meio acabou chamando-o para vir trabalharem junto – na época, ele estava morando no Rio. Morreram os dois tios, que eu não conheci, e foi ele que acabou abraçando mesmo, seguindo o ramo. Ele foi um industrial gráfico e um editor muito importante da década de 50. Até hoje me perguntam se eu era diretor da revista Seleções, porque temos o mesmo nome [Carlos Oscar Reichenbach]. Obviamente era ele. Meu pai lançou no Brasil várias revistas, denominadas, inclusive, de imprensa dirigida. Revistas especificamente para médicos, como a Médico Moderno; revista de ensino, que era voltado aos professores, enfim… Lançou no Brasil a revista Casa e Jardim e a primeira revista para mulher, chamada Vinte. Essa revista era um projeto gráfico muito audacioso para a época, foi a primeira revista feita especificamente para a mulher que não tinha fotonovela, que contratava jornalistas conceituados para escrever sobre política, como Ary Fernandes, por exemplo. Muitos escritores publicaram suas novelas, seus romances, na revista Lady, que foi não só o projeto de vida dele, como custou um pouco sua saúde. Teve dois infartos por conta da existência e do final dessa revista. Por conta disso, exatamente por conta dessa experiência editorial, evidentemente que eu passei minha infância e minha juventude convivendo essencialmente com escritores, com jornalistas. De certa maneira, eu nasci meio programado para continuar esse ramo. Não por menos fui editor de todos os jornais escolares de onde eu estudei. Meu pai havia me dado, aos oito ou nove anos de idade, a meu pedido, um mimeógrafo à tinta, uma novidade para a época – o presente da minha vida. Os mimeógrafos todos eram a álcool, então era uma coisa extremamente nova. Por conta disso, muita coisa era feita em casa, impressa em casa, editada em casa, especialmente os jornais de vários colégios onde estudei. Em meados de 50, devido a essa amizade com meu pai, tive essa aproximação, não só com escritores, com dramaturgos, com compositores famosos – eu convivi, desde muito cedo, com Juraci Camargo, com Hernani Donato. O compositor Hekel Tavares era bastante amigo do meu pai também. Hekel Tavares foi compositor de uma sinfonia com temas brasileiros que foi usada como a música do filme A Grande Cidade, do Cacá Diegues. Glauber usou o Villa-Lobos, Cacá usou Hekel Tavares. Era um compositor, para época, do mesmo nível, com concerto para temas brasileiros. Meu pai, na revista Lady, publicou um novela da Dinah Silveira de Queiroz chamada Jovita. Essa novela foi adaptada para o cinema pelo diretor Oswaldo Sampaio, outro amigo de meu pai. Antes de comprar os direitos, ele fez a adaptação, fez a proximidade para a compra de direitos. Meu pai até mediou, de certa forma, com Dina Silveira de Quiroz o contrato de compra de direitos para filmar Jovita. Eu me lembro, aos oito, nove anos de idade, de assistir à leitura do Oswaldo Sampaio desse primeiro tratamento. Para mim, isso foi, indiscutivelmente, o gatilho para poder me interessar por cinema. Ter assistido à leitura do roteiro pela boca do seu próprio diretor. Interpretar a grandeza dos papéis. Naquele momento eu coloquei na cabeça que aquele era o tipo de mídia de expressão que eu gostaria de fazer no futuro. Influenciado por essa leitura, aos dez, onze anos – não sei precisar exatamente a data certa – eu escrevi o meu primeiro roteiro, escrito num caderno de escola, etc e tal. E se chamava, não me lembro bem, Mar das Mulheres Mortas, Mar das Mulheres Assassinadas, alguma coisa assim.

Z – Sobre o que era?

CR – Era muito calcado na imagem de alguma coisa que eu tinha visto na televisão também. Mais tarde eu vi um filme do Roger Corman, chamado A Última Mulher do Mundo, The Last Woman in the World. Eu me lembro de ter visto aquelas imagens, mulheres sendo trazidas pelo mar, corpos mortos. Não sei se era uma peste, o que era, um Apocalipse, qualquer coisa. Mas tinha um lugar que sobrevivia à hecatombe nuclear. Mas tinha essa imagem, mar adentro, e corpos sendo trazidos pela água – mas isso estava no meu roteiro. Tenho até um projeto de filme futuro, que chama O Mar das Mulheres Finais, que parte da minha experiência com a ressurreição, de certa maneira. Eu fui ressuscitado no Incor, praticamente – fui internado lá com seis horas para morrer. Fiz a operação, botei três pontes de safena, uma mamária, abriram o graal, como chamam os ossos do peito. Fui serrado. Tem um buraco no peito. Puseram a mão lá dentro. Tenho uma amiga ocultista que disse que não devia deixar nunca abrir o graal, colocar a mão no coração. Mas se não colocassem, eu morria. (risos) Eu não tinha controle sobre nada, puseram o quiseram lá dentro. O pós-operatório é uma experiência muito traumática, que dura quatro, cinco, seis dias. Você volta arrebentado. As dores são muito fortes. Especialmente a dor da recuperação. Você não recupera o osso, que é amarrado a aço. Você vive a base de morfina. Eu me lembro com perfeição de ter enxergado esse filme exatamente naquele momento. Então, desenvolvi esse meu projeto terminal. Vai ser o último da minha vida por não ter mais nada a dizer. É justamente sobre um cara que ressuscita – quase um olhar sobre esse portal entre a vida e a morte, que reproduz esse momento, especificamente. O ponto de partida é esse roteiro não filmado, obviamente. É um imaginário de um menino. Tudo vai se juntando, se explicando com o tempo.

Z – Como foi sua adolescência?

CR – Meu pai morreu muito cedo, em 1960, o ano de se completar 13 anos. Foi um impacto muito grande. Naquele momento, meu pai tinha tido um segundo infarto. Ele passou uns quatro, cinco, seis meses debaixo de balão de oxigênio. Talvez, se a operação que eu fiz existisse na época, estaria vivo até hoje. Não sei. Mas de qualquer maneira foi a mesma coisa, um infarto. Durante esse período, fui mandando para um colégio em Rio Claro, chamado Ginásio Culler, onde funcionava – acho que até hoje – um colégio em que o alemão é ensinado como segundo língua. O intuito dele, ainda em vida, era que eu fosse para Alemanha e estudasse lá. Eu já vinha aprendendo a língua, porque havia sido aluno de um colégio que de formação alemã, o colégio Porto Seguro, que na sua origem se chamava Deutsche Schule. Quando ainda era na praça Roosevelt, ele só aceitava alunos filhos de ex-alunos do próprio Porto Seguro. Em Rio Claro, durante meio período, só se falava alemão. Com a morte de meu pai, bloqueei essa língua da minha vida. Eu falava como segunda língua mesmo. A vivência no colégio de Rio Claro teria uma influência muito grande no que viria daí para frente. Imprimíamos folhetinhos, jornalzinhos, revistas, manuais, e trocava-se muito esse material com outros alunos de colégios internos. Tudo passaria a ter uma importância muito grande, com essa perda muito cedo. Uma coisa importante foi o fato de que não se podia voltar para sua casa – apenas uma vez por mês. Nos finais de semana, ou você ficava na escola, ou os seus colegas te convidavam para ir a casa deles, em outra cidade. Isso era uma mecânica do colégio, para não criar dependência. Eu conheci várias cidades do interior – Araçatuba, Penápolis -, por conta desse “intercâmbio”, assim como vários amigos meus vieram para São Paulo e ficaram na minha casa. Por conta disso, conheci Dois Córregos. A primeira coisa que me chamou a atenção na cidade foi a estação de trem. Foi importante também por essa coisa de chegada e partida.

Z – Quando você voltou para São Paulo?

CR – Depois da morte de meu pai, e como não tinha nenhum irmão – quer dizer, tive, mas morreu antes de eu nascer -, tive que ficar com a minha mãe. Aí voltei para São Paulo, de vez. Eu era muito novo. Essa crença de que eu iria assumir a indústria gráfica da família durou ainda uns dois ou três anos, mas a gráfica acabou sendo vendida. Dois anos pós-saída do colégio interno, fui à fábrica, fui à parte química. Mexer com isso, preparar chapa, aproximou-me mais do meio editorial. Nesse meio tempo, posso dizer que o meu vínculo era literário. Eu não era só filho de um industrial gráfico, mas de um homem apaixonadíssimo por enciclopédias – ele tinha dos mais diversos tipos, alemã, latina, Larousse. Meu pai era um homem extremamente erudito – leu Ulisses, de James Joyce em alemão; a gente não consegue ler nem em português… Tinha muito acesso aos livros, então minha proximidade com literatura sempre foi muito grande. Aos 8, 9 anos de idade, enquanto os amigos estavam lendo A Ilha do Tesouro, do Robert Stevenson, eu lia John Steinbeck. Não tinha mistério, não tinha índex dentro de casa – eu lia o que eu queria, e uma literatura muito mais adulta. Eu não sou míope à toa, no colégio interno eu me escondia com vela e lia; eu ficava escondido no banheiro. Falavam que era uma gulodice cultural. Eu estraguei minha vista. Se a literatura era proibida, pior ainda. Isso dificultou na hora de fazer vestibular, pois eu prestei para três cursos: direito, na São Francisco, por uma questão de agradar a mãe; prestei o curso de letras da época, que se chamava Neolatinas, na USP; e havia sido criado em São Paulo o primeiro curso superior de cinema, a Escola Superior de Cinema São Luís. Na hora de decidir, eu não sabia o que fazer. O vínculo ainda era completamente literário: mesmo quando eu resolvi prestar vestibular na São Luís, que tinha um ano de existência, a idéia ainda era ser roteirista. Sempre gostei muito de escrever. Tinha até interesse de fazer, no futuro, filmes, mas o interesse ainda estava no texto, embora o interesse cinéfilo já fosse sedimentado desde a infância.

Z – Você ia bastante ao cinema?

CR – Eu morava no Jabaquara, quando meu pai morreu, e fiquei mais uns dois, três anos lá. Mudei-me para cá [Higienópolis], em 1963/64. Antes de mudar, em 1961/2/3, meu prazer era conhecer São Paulo de bicicleta. Eu e mais dois amigos saíamos de bicicleta do Jabaquara e íamos conhecer os bairros. Por conta disso, eu conhecei, praticamente, todas as salas de cinema da cidade. Era um tempo em que isso era possível. Era uma hora, uma hora e meia de viagem para conhecer, por exemplo, a Freguesia do Ó. Conheci o Cine Centenário, na Vila Maria, o Cine Tucuruvi, no Tucuruvi, na Vila Mazei… Era uma loucura imaginar o percurso, antes do metrô, e ainda assim é chão pra cacete. Eu estourava uma roda de pneu por semana. Esse foi o começo de uma fase meio beatnik, meio andarilha, muito precoce. Mais do que ir ao cinema, eu gostava de andar pela cidade. Quando ia ao cinema, ia sem preconceitos, assistia de tudo – os preconceitos vieram com a formação, norteador um pouco do que é gosto cinematográfico. Maior do que o gosto era a vontade de conhecer o maior número de filmes possíveis, assim como de conhecer as salas de cinema. Lembro que com 14, 15, íamos muito a cinema de bairro porque com carteira falsificada entrávamos em filme de 18. Vi filmes do Hitchcock muito antes de ter idade para isso. Tudo isso, num momento, para mim, em que a literatura ainda era uma manifestação maior. O gosto pelo cinema veio junto, acompanhando esse interesse pela literatura.

Z – E o interesse pela música, quando veio?

CR – Simultaneamente, aconteceu uma coisa que foi deflagradora. Tinha um piano de cauda em casa – era do meu pai; antes da indústria gráfica, ele teve um grupo jazzístico. Ele era um exímio tecladista e eu aprendi teclado muito cedo, especialmente com música clássica. Vivi numa época em que era se ensinado com palmatória. Tomei um trauma dessa merda, do aprendizado de piano, que em determinado momento eu abandonei. Foi no ano em que meu pai morreu. Vim aprender aos 16 anos – tinha um húngaro que morava em São Paulo, caríssimo, chamado Paul Urbach, que ensinava piano de ouvido, como notação jazzística –, e foi o que tirou o trauma de infância com música clássica. Só recentemente descobri que o cara que treinou meu compositor e parceiro musical de meus filmes, Nelson Ayres, também foi aluno dele. (risos) Não é para menos que temos essa sintonia. Não pude ter muitas aulas, por ser caro, mas foi aí que comecei realmente a acompanhar a música, junto com o cinema e a literatura. O trauma era com a forma didática.

Z – É por isso que 5000 Dedos de Dr. T?

CR – Alguém sempre me pergunta qual é o filme da minha vida: é o 5000 Dedos do Dr. T, a história de um professor sádico de piano. Acho que vi o filme umas 50 vezes e tenho uma cópia comigo, baixada da internet. O filme fez minha cabeça quando eu era moleque. Era um filme absolutamente surrealista – só quem sofreu na mão de um sádico consegue entender perfeitamente aquele filme. Eram 5000 teclas, tocadas por quase 1000 crianças. Anos depois fui ver como o diretor, Roy Rowland, era extremamente criativo. Já sei o filme na ponta da língua; o cinema começou lá para mim. Por mais realista que o meu filme pareça, tem sempre um traço surreal no meio – a minha tendência ao surreal tem muito a ver com o surrealismo, mas muito a ver também com 5000 Dedos de Dr. T. Por que esse filme me encantou desde cedo se não é um filme careta, tradicional? Porque abala o imaginário, ele trabalha o sonho. Se você pega todos os meus filmes, por mais natural e comportado que ele pareça, tem sempre uma virada lá no meio, porque começa a me encher o saco. Vou para os 5000 Dedos do Dr. T, e as coisas voltam e se ajustam. Inácio Araujo, com quem eu já escrevi vários roteiros, diz que a função dele como roteirista era me trazer para a Terra (risos). Às vezes, durante a própria filmagem, começo a ficar angustiado por estar muito careta, eu invento uma coisa para o dia seguinte. Isso aconteceu até em Falsa Loura, porque estava tudo quadradinho. Eu falei com a produtora de elenco: despenca uma mulher semi-nua a falar Sócrates no filme. São as coisas inclusive que vão definir o filme. Começa a ficar realista demais, é bom quebrar, porque depois as coisas vão se explicar de melhor forma.

Z – Isso é decidido na filmagem, ou é planejado?

CR – Depende do filme. Se na hora, eu achar que o filme está ficando careta demais falo para por um sonho lá. Se você acha que empacou, filma um sonho. (risos) Essa é a grande lição do [Luis] Buñuel: as pessoas sonham. É algo muito ligado à idéia do desajuste. Recentemente, comecei a ter problemas de labirintite, o que parece uma coisa cinematográfica: uma panorâmica, de repente tudo começa a girar em volta; claro que vem ânsia de vômito, passar mal. Se eu passar mal num restaurante, vai ser um fiasco. Meu cardiologista diz assim: tem horas que a labirintite vem para te colocar no rumo. Às vezes, ela tem um efeito benéfico, porque você está fora do prumo, e ela ajusta. É como o desenvolvimento de uma obra, de um roteiro, qualquer coisa: você precisa fazer balançar o coreto, provocar um caos lá dentro, para que a coisa volte ao prumo. É a mesma relação que eu tenho com o cinema, engraçado, não? A coisa, ás vezes, está bem estruturada demais. Isso, para mim, é a peça motora numa obra de arte. Com a música é a mesma coisa. Não há nada pior numa trilha sonora do que ser toda afinada demais. Ela tem que, em uma hora, não ser afinada. Quando ela se ajustar, ela vai parecer especial. Não pode ficar monocórdica, dar tudo certo. Isso pode ser imaginado na hora da escritura, na hora da montagem, e pode ser, inclusive, realizado na hora da mixagem do filme. O filme está acabando e aí: está careta essa merda. Eu me lembro com perfeição de ter acompanhado de perto a montagem de O Bandido da Luz Vermelha. Na edição desse filme, tinha dois gênios: o Rogério [Sganzerla]; e um homem brilhante, com quem eu tive a chance de trabalhar, o Sylvio Renoldi, um montador extraordinário. Estavam os dois, ia entrar o personagem do político quase no final de filme. Falaram: aqui no começo, vamos colocar um avião chegando, que só vai chegar em quarenta minutos. É isso. Eu acho que no fundo, no fundo, defende uma tese – que sempre foi a minha – de que o processo criativo não pode parar. Não pode ser interrompido na filmagem, ele tem que continuar, até que se o dê como acabado. Para mim, o filme pode mudar até na mixagem. Eu estou preparado para isso, estou aberto para isso. Se as coisas não estão acontecendo, pode dar uma virada do avesso – uma trucagem, um efeito especial que você coloque. Antes você não tinha essa possibilidade, hoje você tem a da intermediação digital. Trabalhá-lo numa ilha de edição em que você possa mudar as coisas, criar a partir disso. O Guilherme de Almeida Prado estava me falando que, quando ele percebeu, ao fazer seu último filme, Onde Andará Dulce Veiga?, que ele podia fazer o que quisesse, mandar o cara para o espaço, literalmente (risos), isso não estava calculado. Manda o cara para o Cochinchina. Chegamos a um ponto tecnologicamente falando em que o ato da re-criação, que o filme termina quando você dizer que acabou, porque não vai ficar a vida inteira fazendo isso. O ato criativo não acaba mais quando você mixa o filme – pouco tempo atrás acabava até antes disso.

Parte 2