Depoimento de André Setaro

Dossiê Carlos Reichenbach

Reichenbach: Cinema e Explicação do Cinema

Carlos Reichenbach, sobre ser um realizador cinematográfico de notável competência e de temáticas por vezes insólitas, é um erudito, que entende, como poucos, de cinema, a julgar pelos seus escritos que revelam uma compreensão exata do sentido da mise-en-scène. Basta ler o seu ensaio sobre Valerio Zurlini para sentir a aguda exegese que faz deste cineasta italiano. Reichenbach pode ser considerado, também, um colecionador de obras raras e do grand guignol, a exemplo de seu conhecimento de filmografias dilacerantes como as de um Mario Bava, Dario Argento ou Jesus Franco. Um amante do grande cinema, mas, e sobretudo, um homem que sabe olhar os filmes no sentido do descobrimento de sua beleza estética muitas vezes por detrás do sangue e da violência. São exemplares os títulos que programou na indispensável Sessão do Comodoro que se realiza na capital paulista. É o amor ao cinema, à arte do filme, que o faz aberto e lúcido sem as costumeiras viseiras nos olhos, que tanto asfixiam os cineastas brasileiros.

A primeira vez que tomei conhecimento do nome de Carlos Reichenbach foi quando, nos anos 70, fui ver Lilian M, relatório confidencial, obra original e desconcertante. A estrutura narrativa desse filme singular no panorama do cinema brasileiro de todos os tempos é essencialmente cinematográfica atravessada pela ironia, pelas constantes mudanças de gêneros e de influências conspiratórias (Samuel Fuller, principalmente, e Jean-Luc Godard). A troca de gênero, por assim dizer, é efetuada de acordo com o ambiente no qual a personagem principal se encontra. Apesar de tê-lo visto apenas uma vez, e há mais de trinta anos, ainda o tenho na memória, embora em fragmentos. A partir de Liliam M, passei a verificar, na medida em que seus filmes eram lançados, os filmes de Carlos Reichenbach.

Reichenbach tem o poder de conciliar o elo sintático com o elo semântico, imprescindíveis, quando bem dosados, para a expressão das imagens em movimento. Sabe que o valor cinematográfico de um filme está na maneira de o realizador articular a narrativa a se utilizar, para isso, dos elementos da linguagem fílmica. Não é um cineasta de temas nobres, mas muito pelo contrário. Seu cinema, principalmente em seus melhores momentos, é um cinema visceral, que faz espraiar, na tela, a sua visão do homem, o seu olhar sobre a condição humana, a sua filosofia de vida. Cinéfilo, conhecedor dos grandes autores, seus filmes carregam o aprendizado deles, embora as influências não o limitem, mas fazem mais ricos os seus filmes mais pessoais, nos quais deposita o seu pensamento de cinéfilo, de homem perseguido pela criação e que é um humanista pleno de consciência da tragédia da existência, do estar-no-mundo, do daseign heideggeriano.

Entre os filmes reichenbachianos, aqueles que mais me atingem, além de Lilian M, hors concours, estão: Filme demência (1986), Anjos do arrabalde, as professoras (1987), Alma corsária (1993), Falsa loura (2007), apesar de gostar muito também de Dois Córregos (1999) e de Amor, palavra prostituta (1981), entre outros.

André Setaro é crítico de cinema e amigo de Carlão