Especial Rodolfo Arena
São Bernardo
Direção: Leon Hirszman
Brasil, 1973.
Por Vlademir Lazo
São Bernardo existe bem no meio dos vinte anos que separam as celebradas adaptações de Graciliano Ramos por Nelson Pereira dos Santos (Vidas Secas, 1963, e Memórias do Cárcere, 1984). O que impressiona é que o filme de Leon Hirszman não fica muito atrás dos títulos citados; na verdade, não está nada distante da qualidade dos trabalhos de Nelson Pereira, sendo que tampouco estranharíamos (conhecendo todos eles) se alguém confessar preferir o de Hirszman aos outros dois.
Curiosa analogia: sempre assisti e revi São Bernardo nos últimos anos geralmente pensando quase o tempo todo em There Will Be Blood, de Paul Thomas Anderson. O Paulo Honório interpretado com intensidade por Othon Bastos pode remeter a uma espécie de versão cabocla do personagem de Daniel Day-Lewis em There Will Be Blood, desde a caracterização física (basta ver a imagem que acompanha esse texto) até a trajetória pontilhada pelo desejo de riqueza, pela obsessão e pelo egoísmo e indiferença, que os fazem não ter olhos para mais nada, nem mesmo para a própria mulher escolhida como esposa (no caso de São Bernardo).
O filme de Hirszman é um estudo sobre a cobiça e os poderes simultaneamente construtivos e destrutivos que permeiam e desgastam a personalidade de um latifundiário possuído por uma ambição desmedida, descortinando a ascensão e ruína moral de um personagem aparentemente destituído de virtude e redenção, mas destinado somente ao vazio em que acaba todo homem que se julga o centro do mundo (do seu mundo, pelo menos). Todos os passos e decisões de Paulo Honório são unicamente pensados em seu benefício próprio, para alimentar suas ambições pessoais: construir uma escola vale menos pela inutilidade de fazer seus empregados aprenderem a ler do que pela oportunidade de lucro com um colegiozinho particular no meio da roça (bem como é na mesma medida com os alicerces da igreja por ali); encontrar uma esposa lhe interessa mais pelo desejo de um herdeiro para suas terras na propriedade de São Bernardo do que por sentimentos que lhe são indiferentes, como o amor ou a vontade de uma companhia.
São justamente esses dois mistérios indecifráveis aos olhos do personagem que geram os confrontos entre Paulo Honório e as forças-motrizes que na segunda metade do filme se contrapõem a sua personalidade e andam em paralelo à sua trajetória (e terminam por levá-lo ao desespero e depois à solidão): o conhecimento e as relações conjugais. Padilha, o antigo herdeiro e proprietário de São Bernardo, como o mestre-de-escola a que se vê reduzido nunca teve a fibra e praticidade do seu patrão (que o fez perder as terras que eram suas), mas semeia uma certa desordem plantando idéias subversivas e espalhando juízos simpatizantes ao comunismo, além de cultivar e trocar conhecimento sobre arte e literatura com Madalena (que além de antiga professora também escreve artigos), assuntos cuja finalidade Paulo Honório jamais alcançará. E casar com Madalena (Isabel Ribeiro) é compartilhar de um espaço particular com uma pessoa que jamais deixará de lhe ser estranha; ao contrário, a proximidade advinda com os anos só serve para torná-los mais diferentes um do outro, sem jamais concretizarem um laço familiar ou um casal com afinidade em cena.
Cada um à sua maneira, todos combatem a aridez do meio e a aspereza do mundo, em que a violência interior e física forja a convivência humana, mas com Paulo Honório se alimentando disso para oprimir os demais ao seu redor e domar aquele espaço à força. O filme é bem fiel ao romance de Graciliano, perfeito tradutor de uma alma rústica, o que é conservado o tempo todo na narração em off de Othon Bastos, cuja impressionante presença em cena reflete no rosto e corpo inteiro a essência do seu personagem (na melhor atuação de sua carreira, junto com a de Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol). Dentre o elenco secundário, a participação de Rodolfo Arena no papel do Dr. Magalhães.
O ótimo dvd lançado com o filme recupera e restaura as cores magníficas da fotografia excepcional de Lauro Escorel, que enquadra rigorosamente o homem fundido com a paisagem incomensurável, pintando grandes imagens e tirando proveito das potencialidades do quadro. Certamente Graciliano Ramos é o escritor brasileiro cujas obras mais renderam grandes adaptações cinematográficas ─ e não custa lembrar que o seu melhor livro, Angústia, ainda não foi filmado.