Especial Rodolfo Arena
O Ébrio
Direção: Gilda de Abreu
Brasil, 1946.
Por Gabriel Carneiro
Visto 65 anos depois de seu lançamento nos cinemas, pode-se estranhar o sucesso estrondoso que O Ébrio teve à época. Os números, como não poderia ser diferente no Brasil, o país sem instinto de memória, são bem turvos. Estime-se que de 12 a 15 milhões de pessoas viram o filme nos cinemas, isso quando a população brasileira estava na casa dos 60, 70 milhões de habitantes. O estranhamento vem, em grande parte, pela estrutura circular do filme, muitas vezes repetitiva. E também pelo fato de o ébrio do filme só vir a ser assim no quarto final do longa de 2 horas. Pois bem, para os anos 1940 brasileiros, pouco há de estranho. Egresso de uma estrutura radiofônica, da Rádio Nacional, o longa assemelha-se às radionovelas, e busca nisso seu trunfo de sucesso, o maior da Cinédia.
Claro, não que entendendo seu contexto e seu modelo de produção faça dele um grande filme. O Ébrio tem diversos problemas, justamente por se assemelhar tanto a uma estrutura radiofônica numa mídia constituída principalmente pela imagem. Narração em off reiterativa para explicar sentimentos, suspensão de expectativa, demora em ter reais pontos de virada, previsibilidade, apresentação de personagens que depois são completamente esquecidos uma vez que o propósito é atingido, maniqueísmo, etc, são alguns dos vários problemas vistos no filme. Ademais, talvez a grande questão seja a necessidade em mostrar toda a vida de Gilberto Silva, o escorraçado pela família que vira médico e cantor de sucesso, com direito a flashbacks apenas ilustrativos, numa estrutura um tanto desengonçada.
Mas tudo isso é justificável, nessa tentativa de esboço de indústria do cinema brasileiro, ainda mais porque é um filme muito digno, muito honesto, em retratar o drama desse personagem folhetinesco um tanto errante. E o mérito disso vai muito para os atores, em especial Vicente Celestino (Gilberto), o cantor de outrora, que embalou o filme com duas canções (Porta Aberta e O Ébrio, em momentos singelos do longa), e também é autor da peça que deu origem ao filme. É um carisma que só. E também Rodolfo Arena, em seu começo de carreira no cinema, fazendo o vilão, o primo José que tenta e seduz a esposa de Gilberto, numa atuação digna dos maniqueístas quarentistas. Nisso, surge toda uma esquadra de personagens tipos, tipicamente brasileiros, apetecidos pela comédia – e que deixam o tom de O Ébrio tão irregular, variando desmedidamente entre a comédia de costumes e o dramalhão -, que são os demais familiares. Destaque aí para o sempre grande Walter D’Ávila, que encarna um senhor de idade aproveitador.
Vale dizer que a dignidade não emperra em clichês ou necessidades, tão galopantes na indústria de hoje, do contento, reparador de lares e dores, pois as dores também são dignas, mesmo em bebuns, que bebem para esquecer.