Dossiê Ênio Gonçalves
Garotas do ABC
Direção:Carlos Reichenbach
Brasil, 2003
Por Vébis Jr
Garotas do ABC é classificado como um dos filmes mais especiais de Carlão decorrente ao fato de que durante o seu processo, cortando uma hora e deixando com duas (o primeiro corte definitivo tinha 3 horas) mudou a cara do filme de narrativo para filme pessoal.
Primeiro fator pra entender melhor sua categoria é perceptível nos primeiros minutos do filme que começa com um streap-tease ao contrário e imediatamente colidindo a protagonista Aurélia com sua família, da raça negra, conserva hábitos católicos e conservadores pra uma jovem operária têxtil de 22 anos; linda mulata que mora com os pais em um bairro residencial típico de operários da classe média baixa na região do ABC paulista e que por amar homens bombados, ganhou o apelido de Schwarzenega.
Ao apresentar os outros personagens, notamos o grande conflito do filme na figura do namorado, o fisiculturista Fábio, que por uma tragédia familiar do passado, criou vínculos com um grupo de neo nazistas capitaneados pelo jovem intelectual de classe alta Salesiano, interpretado por Selton Mello em um de seus papéis mais notáveis no cinema nacional.
Apesar dos caminhos externos, o filme consegue cumprir com sua tarefa de observar a vida da operária e a vida no ócio de todas as operárias pelo viés de Aurélia. A vida no trabalho completa-se quando conhecemos as companheiras do trabalho que se soltam à noite no baile black do Clube Democrático, que de acordo com o projeto inicial de Reichenbach “as operárias mais deliciosas do ABC” se reúnem no final de semana.
Esta química reage na combustão do grupo fascista que começa a aterrorizar todos imigrantes da região acusando-os de tirar a “vaga” da população local, e os pequenos atos fascistas acabam atraindo a atenção do jornalista policial Nélson Torres e do delegado local, Jairo Ferreira (nome do escritor e amigo do diretor), e as diferenças e acordos com o justiceiro e sicário Maleita.
O interessante desta questão é justamente a parceria que Reichenbach sempre firmou com Ênio Gonçalves, a ponto de chamá-lo até mesmo de alter ego, posição inegável que nos é confirmada ao reassistirmos Filme Demência.
Garotas do ABC veio de uma miscelânia de alguns projetos que o diretor sempre trabalhou, a do projeto “Sonhos de Vida, Vida de Sonhos” e “Abc Clube Democrático” que deveriam ser seis filmes que retratariam a vida operária no ABC, mas que por uma questão de mercado freou em Garotas do ABC e parcialmente maquiado em Falsa Loura no retorno do diretor para o cinema proletário.
Ha quem diga que ao analisar o personagem de Nelson, fique claro que o diretor criou o personagem pensando justamente em Ênio na atuação. E sejamos convincentes: num filme com tantas atuações ímpares, Ênio surge com maestria ao ser um jornalista que tem desenvoltura ao andar entre o bem e o mal nos pólos que o filme oferece, tal qual notamos justamente em Filme Demência.
Nos últimos vinte minutos do filme, subvertendo o tom chamado de “sincopado” do diretor, o tom ultra-realista e tragicômico, de crônica urbana que permeia toda narrativa, e que após familiarizados com o grande número de personagens “arrancados do real”, o espectador irá acompanhar a catarse fulminante causada pelo choque destes universos próximos, mas distintos, quando não, antagônicos.
Para muitos cinéfilos de plantão, que sempre garimpam no cinema de Reichenbach algumas referências, não faltam fontes como Fuller, Ray, Person e poemas libertários como de Oswald Spengler pela boca de Mello em meio as pedreiras de Diadema, uma cena que plasticamente tem muita potência imageticamente.
Garotas do ABC desde antes de sair do copião já caiu nas graças do diretor, justamente pelo fato de ser um projeto de quinze anos de um conceito: “só o tempo livre é o tempo da liberdade”. E se o que era pra ser dois filmes baseados na vida de trabalho e outro no tempo livre, acabou se tornando dividido em dois capítulos no mesmo filme, uma hora cortada, mas o resultado final acabou se tornando a história singular que vai se tornar coletiva.
Toda legitimidade do projeto se justifica devido ao fato de que em três a quatro meses, o diretor percorreu de ônibus e absorvendo as maneiras de conversar, o jeito, os tipos de assunto, seus ídolos e manias, engendrando um roteiro bem elaborado junto a Fernando Bonassi que captou o quão importante foi manter as figuras femininas intactas do projeto inicial.
E lá estão todos, vendo mais um filme do Carlão e notando como as figuras masculinas estao sempre no time dos personagens errantes, que dão murro em ponta de faca, e nós, do lado de cá, apenas observamos, absorvemos e aprendemos.
Vebis Jr é pesquisador do Cinema paulistano e professor de direcao na Academia Internacional de cinema.