Por Daniel Salomão Roque
À Meia-Noite Levarei sua Alma
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1964.
Em algum momento na segunda metade da década de 60, minha avó, então aspirante a atriz e mãe de duas adolescentes, participou de um teste com José Mojica Marins, e de lá saiu surpreendida – o barbudo de unhas compridas, quem diria, era um gentleman!
Seu espanto, embora carregasse uma boa dose de inocência, era plenamente compreensível: três filmes, um programa de televisão, um gibi bimestral, além de muito carisma e publicidade, haviam conferido ao personagem Zé do Caixão uma popularidade inacreditável. As platéias, hipnotizadas pela figura exótica do coveiro, tomavam a ilusão por realidade e logo trataram de fundir criador e criatura num único ser. Mojica, muito espertamente, capitalizava a histeria coletiva mediante aparições midiáticas e processos seletivos pra lá de bizarros, onde os rapazes eram eletrocutados e insetos peçonhentos transitavam pelos corpos seminus das mulheres.
Teria minha avó se submetido a isso? Os pormenores do teste nunca foram revelados a mim, em parte pela injustificada vergonha que ela sente ao relembrar esse trecho de sua vida. De uma coisa, porém, tenho a mais absoluta certeza: naquele mesmo dia, uma perplexidade ainda mais avassaladora a teria atingido caso profetizasse que, três décadas mais tarde, um dos seus sete netos teria a vida revolucionada por aquele homem.
Lembro-me muito bem da primeira ocasião em que de fato travei contato com a figura de Zé do Caixão: foi em 1995, aos nove anos de idade, manuseando um fascículo da coleção 1000 que Fizeram 100 Anos de Cinema, lançada pela revista Istoé em comemoração ao centenário da primeira projeção de imagens em movimento. Até então, só o que sabia a seu respeito era o que me falavam os adultos e, a julgar pelas asneiras que saíam de suas bocas, Zé do Caixão era uma espécie de exu, lenda urbana ou entidade folclórica sobrenatural. Passados trinta anos, a linha que separava criador e personagem ainda era tênue – foi um susto saber que, de certo modo, ambos existiam.
O episódio, contudo, não bastou para despertar em mim a curiosidade pela obra de Mojica. Durante toda a infância e metade da adolescência, os quadrinhos foram minha única paixão. Diante da enorme diversidade de traços e palavras proporcionada pelos gibis, os filmes me pareciam monótonos, anódinos e inofensivos – pelo menos aqueles que meu pai trazia da videolocadora, os quais eu, ingenuamente, julgava serem os únicos que o mundo havia produzido.
Porém, beirando os quinze anos de idade, algo dentro de mim havia mudado. O simples ato de ler gibis já não me satisfazia; agora eu também queria saber de onde surgiam aquelas histórias, o contexto em que se desenvolviam, quem eram os artistas responsáveis pela sua criação. Foi então que ganhei de presente A História das Histórias em Quadrinhos, um livro do Álvaro de Moya que, a despeito de sua superficialidade, despertou-me para as muitas conexões entre as HQs e o cinema, sendo, portanto, uma obra de extrema importância para minha formação: lá, soube da existência de Welles, Ford, Eisenstein, Resnais, Godard e Fellini, só para citar alguns nomes. O volume também fazia uma rápida menção à revista O Estranho Mundo de Zé do Caixão, que trazia o personagem como anfitrião de histórias macabras roteirizadas por Lucchetti e desenhadas por Nico Rosso.
Nascia ali meu interesse pelo cinema. De uma forma ou outra, os filmes me pareciam essenciais para o pleno entendimento da linguagem dos quadrinhos; Mojica, por sua vez, era a um só tempo cineasta e, como eu tinha acabado de descobrir, personagem de HQs, tendo sido, por esse motivo, escolhido por mim como pontapé inicial das minhas aventuras pelo universo cinematográfico. No final de semana seguinte, juntei meus poucos trocados e varri a Avenida Paulista, a Rua Augusta e o centro velho de São Paulo em busca de seus filmes. Foi uma tarefa árdua: a coleção da Cinemagia havia sido lançada há pouco tempo, mas ainda não tínhamos DVD player em casa, e as antigas edições em VHS eram bastante raras. Com as pernas cansadas, as costas transpirando e os dedos escurecidos pelo pó de dezenas de prateleiras, eu estava prestes a desistir. Eis que, abruptamente, nos cantos de uma lojinha qualquer, apareceu diante de mim uma velha fita em cuja lombada se lia, em letras garrafais: À Meia-Noite Levarei sua Alma.
Desnecessário dizer que o filme rompia com tudo o que eu já havia assistido antes. À Meia-Noite Levarei sua Alma era uma obra movida pelo choque, descontinuidade e invenção, aparentemente editada dentro de um açougue. Seus cortes eram bruscos; os close-ups, extremos; os planos, ora longos, ora curtos; os ângulos, sempre insólitos. Em termos estéticos, eu só encontrava precedentes nos gibis da EC Comics, que, a julgar pelo prólogo, no qual uma bruxa amaldiçoa a platéia, também eram lidos por Mojica. Ainda assim, a semelhança era vaga, difusa; não apenas por se tratar de outra mídia, de um suporte distinto, mas sobretudo pela originalidade da fita, uma jóia rara onde a cultura pop se cruzava com a metalinguagem, o folclore brasileiro, a crítica social e alguns sentimentos anti-religiosos que carrego desde pequeno.
Mas, afinal de contas, como classificá-lo? Eu não sabia e, dez anos depois, continuo sem saber. Trata-se, sem a menor sombra de dúvidas, de uma narrativa pertencente ao gênero terror; todavia, seu teor visceral e instintivo foge a qualquer tentativa de rotulação – ele é sangue, suor, transgressão e criatividade… para mim, isso basta. Mais do que o primeiro filme brasileiro a chamar minha atenção, À Meia-Noite Levarei sua Alma foi a obra que fez de mim um cinéfilo. Naquele fatídico sábado, ao terminar de assisti-lo, percebi que a idéia de se conhecer o cinema para entender melhor os quadrinhos era, na realidade, completamente estúpida: a linguagem cinematográfica era fascinante por si mesma, e a prova disso estava bem ali, dentro do meu videocassete.