Musas Eternas

Isabel Sarli

 

Por Daniel Salomão Roque

Dotada de seios gigantescos e uma total desinibição diante das câmeras, ela teria feito a alegria de Russ Meyer, caso o genial cineasta (e notório apreciador de peitudas) houvesse se aventurado pelos pampas antes de partir para a aposentadoria. Hilda Isabel Sarli Gorrindo Tito, que completa 76 anos esse mês, foi o maior símbolo sexual do cinema argentino entre as décadas de 50 e 80, encarnando adúlteras, prostitutas, ninfomaníacas e uma série de outros papéis que ajudaram a tornar menos moralista a América Latina dos generais, líderes populistas e fiéis católicos. La Coca, como é carinhosamente conhecida, nasceu no dia 09 de julho de 1935, em Concordia, e logo moça se lançou na carreira de modelo, ganhando o título de Miss Argentina aos vinte anos de idade. Este evento, mais do que transformá-la numa celebridade nacional, fez com que ela fosse descoberta por um sujeito chamado Armando Bo. 

Corria o ano de 1955 e Bo, saído há quase uma década de uma carreira esportiva – fora um dos mais famosos jogadores de basquete em seu país – dava seus primeiros passos no ofício de cineasta. Em 1948, ele havia fundado com Elias Hadad a S.I.F.A. (Sociedad Independiente Filmadora Argentina), tornando-se produtor e ator de umas tantas fitas bem-sucedidas, num ciclo que teve início com o filme Pelota de trapo, de Leopoldo Torres Rios, aclamado drama social abordando a relação de um grupo de garotos pobres com o futebol. O ex-atleta havia acabado de dirigir seu segundo filme, Adiós muchachos, quando se encontrou com Sarli, vinte e anos mais jovem, e decidiu que ela não somente seria a estrela de sua fita seguinte, mas também sua esposa. 

Surgia então uma parceria prolífica e duradoura que só se encerraria em 1980, com a morte de Armando Bo. El trueno entre las hojas, de 1956, filme de influências neo-realistas sobre uma revolta de camponeses semi-escravizados, marcava a estréia de Isabel Sarli nas telas, protagonizando logo de cara o primeiro nu frontal da história do cinema latino-americano: a visão da atriz se banhando num riacho, como veio ao mundo, fez com que filas gigantescas se formassem nas salas de exibição de toda a Argentina. Os dois títulos seguintes, Sabaleros e Índia, seguiam a mesma fórmula: árida temática social mesclada a flashes estratégicos de violência e nudez. 

…Y el demônio creó a los hombres, gravado em 1960, era uma resposta pessimista ao Et Dieu… créa a la femme de Roger Vadim, e ao mesmo tempo anunciava um novo tom aos filmes da dupla, que a partir de então seriam marcados por uma crescente exuberância e um caráter cada vez mais melodramático. Favela, do mesmo ano, deu pela primeira vez aos espectadores a oportunidade de apreciar em cores o carisma da atriz, que contracenava com Ruth de Souza e Jece Valadão numa espécie de versão cinematográfica do samba Conceição, de Jair Amorim e Dunga. Se Favela era uma ode ao Rio de Janeiro, os dois filmes seguintes, La burrerita de Ypacaraí, rodado em lindo scope, e La diosa impura, em Eastmancolor, podem ser considerados divinizações igualmente belas do Paraguai e da Cidade do México, respectivamente. 

Todavia, os anos de ouro do casal teriam início somente em 1968, com o lançamento de La mujer de mi padre. Não era o melhor filme dos dois, mas estabelecia o padrão a ser seguido em todos os que o sucederiam: o enredo deixava de ser um pretexto para o sexo; agora o sexo é que se tornava um pretexto para o enredo. Em fitas cada vez mais coloridas, cômicas e despudoradas, Armando Bo capturava a nudez de sua esposa nas situações mais insólitas: estuprada no interior de um açougue (Carne); possuída por um demônio indígena (Embrujada); seduzida por um cavalo de corrida (Fiebre); numa festa onde dezenas de idosos pelados dançam Rock Around the Clock (Insaciable). A fita mais emblemática desse período é, sem sombra de dúvidas, Fuego (1969), obra-prima do sexploitation, influência confessa de John Waters (Divine caminhando pelas ruas de Baltimore em Pink Flamingos? veio daqui) e materialização em película de tudo aquilo que Pedro Almodóvar sempre quis ser, mas nunca conseguiu. 

Isabel Sarli se retirou das telas em 1980, logo após as filmagens de Uma viuda descocada, filme dirigido por um Armando Bo em estágio semi-terminal de câncer. Era o fim de uma parceria que deu ao mundo 28 filmes interessantíssimos. Ao ostracismo se seguiu uma crescente valorização de sua obra e o reconhecimento da sua importância para o cinema latino-americano, bem como retrospectivas e novos papéis.
 

FILMOGRAFIA (todos os filmes dirigidos por Armando Bo, exceto quando indicado) 

1956 – EL TRUENO ENTRE LAS HOJAS
1958 – SABALEROS
1960 – FAVELA
1960 – INDIA
1960 – …Y EL DEMONIO CREÓ A LOS HOMBRES
1962 – LUJURIA TROPICAL
1962 – LA BURRERITA DE YPACARAÍ
1962 – SETENTA VECES SIETE (Leopoldo Torre Nilsson)
1963 – LA DIOSA IMPURA
1964 – LA MUJER DEL ZAPATERO
1964 – LA LEONA
1966 – LOS DÍAS CALIENTES
1966 – LA TENTACIÓN DESNUDA
1967 – LA SEÑORA DEL INTENDENTE
1967 – LA MUJER DE MI PADRE
1968 – CARNE
1969 – EMBRUJADA
1969 – ÉXTASIS TROPICAL
1969 – DESNUDA EN LA ARENA
1969 – FUEGO
1970 – FIEBRE
1972 – INTIMIDADES DE UNA CUALQUIERA
1973 – LA DIOSA VIRGEN
1973 – FURIA INFERNAL
1974 – EL SEXO Y EL AMOR
1976 – INSACIABLE
1977 – UNA MARIPOSA EN LA NOCHE
1979 – EL ÚLTIMO AMOR EN TIERRA DEL FUEGO
1980 – UNA VIUDA DESCOCADA
1996 – LA DAMA REGRESA, Jorge Polaco
2009 – ARROZ CON LECHE, Jorge Polaco
2010 – MIS DÍAS CON GLORIA, Juan José Jusid