Nossa Canção

Orfeu da Conceição: no rastro da MPB de outrora, na trilha da MPBossa que viria
 
   


Por Nísio Teixeira

Pensei em várias ideias para esta seção, mas quando o Adilson falou que antecipou o deadline para 10 de junho, aniversário de Bibi Ferreira, mas também de João Gilberto, eu fiquei pensando como para mim o início da Bossa Nova está muito atrelado ao filme Orfeu Negro/Orfeu do Carnaval, já comentado aqui por ocasião do especial de Carnaval.

A trilha, produzida originalmente para a peça Orfeu da Conceição, foi a primeira parceria entre Tom Jobim e Vincius de Moraes, em 1956. No filme, está lá o violão de Luiz Bonfá e nos vocais, destaca-se Agostinho dos Santos. Bem diferente da voz original de Roberto Paiva que marca a trilha da peça. Como se sabe, o sucesso da peça levou ao filme de Camus, que acabou premiado em Cannes em 1959, mesmo ano em que um consagrado João Gilberto grava Chega de Saudade e, três anos depois, também grava algumas das músicas no disco EP João Gilberto Cantando as Músicas do Filme Orfeu do Carnaval.

Partindo da trilha do filme, queria voltar a esse início, em 1956, quando Jobim e Vinicius produzem a trilha da peça. Vadico, célebre parceiro de Noel Rosa (que seria um bom nome para esta seção, mas deixemos para próximas oportunidades), havia recusado o convite para musicá-la, e o feito coube a Jobim. O que é interessante, nesse momento, é não só perceber o prenúncio da Bossa Nova naquela reunião na peculiar Rua Nascimento Silva, 107, mas também uma espécie de coda de uma outra música popular brasileira: a da era de ouro do rádio no Brasil. A trilha da peça Orfeu da Conceição funciona, assim, como uma interseção de gerações, a de Vadico e Roberto Paiva, e os emergentes da Bossa Nova, que, como visto, obteria consagração internacional fulminante em menos de cinco anos no cinema, com a premiação de Camus, e na música, com os próprios Tom, Vinicius e João – este, como visto, recantando as músicas do filme no Tom da Bossa Nova seis anos depois de Paiva, que, creio, precisa ser mais ouvido e comentado. Façamos aqui, portanto, uma ressalva e um rápido parêntesis biográfico. A ressalva fica com o próprio Vinicius de Moraes como elo forte dessa interseção geracional da música popular brasileira: afinal, o Poetinha já tinha canções interpretadas pelos nomes mais e menos conhecidos da era do rádio, como Carlos Galhardo, Irmãos Tapajós e João Petra de Barros. O parênteses pra que a gente conheça um pouco mais o Roberto Paiva.

Roberto Paiva é o nome artístico de Helim Silveira Neves, nascido no Rio de Janeiro a 8 de fevereiro de 1921. Cresceu na Vila Isabel, na rua Santa Luiza, onde, durante o Carnaval, recorda-se das batalhas de confetes existentes ali e na rua adjacente, Dona Zulmira, a dois quarteirões de onde, em 1950, seria construído o estádio do Maracanã.

Helim tornou-se Roberto Paiva num dia de gazeta escolar em 1937. Contrariando o que cantava em Feitio de Oração o ídolo Noel Rosa, que viu algumas vezes na mesma Vila Isabel, Helim e seus amigos aprendiam, sim, um pouco de samba no colégio – no caso, o Pedro II. Sempre que alguém queria lembrar algum samba, Helim era solicitado pelos colegas para cantar os novos sucessos do rádio, do qual era ouvinte assíduo. Mas, naquele ano, o Rio se mobilizava para receber a visita do galã hollywoodiano Robert Taylor, que chegava de navio. As colegas de Helim propuseram matar aula para ver o astro do cinema. Já o cantor e seus amigos não estavam interessados em ver galã algum, mas sim em gazetear jogando futebol. Como a vaquinha feita entre eles não foi suficiente para comprar uma bola, decidiram pegar um ônibus e passear em Niterói.

No meio do caminho, Helim passa pela Rádio Sociedade Fluminense (PRA-6), uma das mais ouvidas em sua casa. Decide, então, conhecer a rádio com os amigos. Ao chegarem na emissora, justamente naquele dia a rádio selecionava, ao vivo, cantores para o seu próximo programa de calouros. Conhecedores da fama do colega no colégio e meio que por molecagem, os amigos resolvem inscrever Helim no programa. E foi assim que, sem ter realmente a menor intenção de cantar, Helim tem sua primeira experiência no rádio. Ao ser perguntado pelo locutor, ele titubeia um pouco, pois, afinal, os pais poderiam estar ouvindo a rádio e descobrir a gazeta do filho. Imediatamente ele se lembra do nome do astro que o fez estar ali naquele dia e responde, de pronto, “Roberto”, ao que acrescenta o “Paiva” em referência a uns parentes paternos de terceiro grau que tinham esse sobrenome.

O novo cantor agendou sua apresentação e, em seguida, olhou para a turma e disse: “agora vocês terão de voltar comigo”. Mas, no dia da estreia, os amigos – entre eles um bom tocador de chorinho, Nilton Fiúza – arrebentam as cordas durante o ensaio. E assim Helim acaba por cantar acompanhado pelo violão do cego Chiquitinho a valsa A Você, de Ataulfo Alves e Aldo Cabral, famosa à época na voz de Carlos Galhardo.

Ao terminar a canção, finalmente Roberto Paiva fizera sua estreia e, ali mesmo, recebera o elogio daquele que seria o seu grande padrinho no mundo do rádio: Cyro Monteiro, que o incentivou a terminar os estudos. Seis meses depois, durante outra gazeta, Paiva tenta a sorte na rádio Mayrink Veiga, uma das mais importantes do Rio, e a primeira pessoa que vê é Cyro Monteiro, que o apresenta a um dos primeiros nomes da emissora, Barbosa Júnior. Ali ele cantou a valsa Caprichos do Destino, de Claudionor Cruz e Pedro Caetano, que sabia ser uma das prediletas de Barbosa. Em seguida obteve um contrato para o programa Picolino, levado ao ar às terças e quintas, de 11h às 12h30, no qual ganhava 20 mil réis para cantar. No programa, participavam o pianista Nonô (Romualdo Peixoto, tio de Cyro e do também cantor Cauby Peixoto) e o violonista Laurindo de Almeida.

Foi Laurindo quem levou Paiva para tentar gravar um disco pela Odeon. O amigo o apresentou ao chefão, Sr. Strauss e chegando lá, Francisco Alves gravava o fox Ainda uma vez (de Francisco Matoso e José Maria de Abreu), acompanhado pela Orquestra Copacabana. Naquele ano de 1938, os estúdios tinham que abrigar no mesmo espaço cerca de 20 músicos, entre violinistas, violas, além do cantor, todos eles sendo assistidos por apenas um microfone, mas também por técnicos com “T” maiúsculo, como Airton Pisco, recentemente falecido, que permitem até hoje ouvir essas músicas com a qualidade e a nitidez, por exemplo, do belíssimo piano de um Francisco Scarambone.

Fechado o parênteses, voltemos a Orfeu da Conceição. Em 1954, Paiva sai da gravadora Sinter e retorna, após quase 15 anos, à sua primeira casa, a Odeon. Depois de já garantir pelo menos um sucesso à gravadora com Menino de Braçanã, de Paquito, em 1956, o diretor artístico da Odeon, Aloysio de Oliveira pede que Paiva vá até um endereço de Ipanema: precisamente à Rua Nascimento Silva, 107. Oliveira havia integrado o famoso Bando da Lua, grupo que acompanhara Carmen Miranda no exterior, e também havia registrado presença no cinema como a voz que interpreta Aquarela do Brasil no famoso desenho Alô Amigos feito por Walt Disney e que apresenta Donald a Zé Carioca e Aurora Miranda. Agora diretor da Odeon, pediu que Paiva fosse àquele endereço em Ipanema pois ali estava morando um pianista e arranjador, parceiro de Newton Mendonça e Billy Blanco em alguns trabalhos, um certo Antônio Carlos Jobim. Ele estava terminando uma série de “sambinhas” que fizera com um novo parceiro, Vinicius de Moraes – já famoso na roda da poesia, da música e do cinema – para o espetáculo Orfeu da Conceição. Era uma adaptação aos morros cariocas do célebre mito grego de Orfeu, que estrearia a 25 de setembro de 1956, com cenários de Oscar Niemeyer, cartazes de Djanira e Carlos Scliar, além de Luís Ventura e Raimundo Nogueira, que também assina a capa do disco. No elenco, Cyro Monteiro, Abdias do Nascimento, Haroldo Costa, Léa Garcia, Dirce Paiva, Ademar Ferreira da Silva, Waldir Maia, Pérola Negra, sob direção de Leo Jusi e orquestra de Leo Peracchi.

Era para aquele endereço, para aquele espetáculo e para aquela nova dupla de compositores que Oliveira havia mandado Paiva para ver “os sambinhas”, porque o intérprete estava sendo cotado para cantá-los junto com a orquestra da gravadora e o violão de Luís Bonfá. Pra variar, Paiva exerce sua verve crítica e recusa em um primeiro momento. Afinal, imagina ouvir os sambas de um compositor em sua própria casa? E se ele não gostasse? Ficaria aquele clima cerimonioso, o Jobim poderia ficar chateado… em todo caso – ufa! – aceitou. Ao chegar na casa do maestro, Jobim, muito à vontade, chama Paiva ao piano e começa a cantar o primeiro dos “sambinhas”: Se todos fossem iguais a você. Os olhos de Paiva brilham e, em seguida, vêm os demais, como Um nome de mulher, Mulher, sempre mulher, Eu e o meu amor e Lamento no morro. As únicas faixas do álbum que não trazem a voz de Paiva são o Monólogo de Orfeu, declamado pelo próprio Vinícius e a abertura. Gravada no sistema Hi-fi, em LP, a solução técnica desagradou Paiva, que gostaria de ter lançado logo, no formato mais conhecido e popular de 78 RPM, Se todos fossem iguais a você. Não deu outra: em pouco tempo, a música já estava entre as mais gravadas nesse formato por outros intérpretes. De viagem a São Paulo, Paiva fica tão desgostoso com o ocorrido quando volta ao Rio que chega a pedir a rescisão do contrato com a Odeon. Ele acaba gravando em 78 RPM, outra música de Tom, não presente em Orfeu, Maria da Graça, que não terá o mesmo alcance das do álbum.

Em todo caso, “Roberto Paiva, escolhido em comum acordo pela Odeon e por nós para cantar neste LP os sambas de Orfeu da Conceição, em nada desmereceu essa confiança. A sua voz de timbre tão agradável dá em todos os números justamente a interpretação que eles pediam: uma interpretação sóbria e direta, apoiada sobre a melodia e em justa composição com os ricos elementos harmônicos que Antônio Carlos Jobim soube criar tão bem em seus arranjos”, escreve Vinicius de Moraes, na contracapa do LP Orfeu da Conceição.

Dali, Paiva rumaria para reunir, naquele mesmo ano, novamente em LP e pela primeira vez, a polêmica musical entre Wilson Batista e Noel Rosa – uma perfeita jogada de recuperação do passado glorioso da MPB. Vinicius e Tom, como visto, com Orfeu rumaram para a Bossa Nova, levando consigo João Gilberto – uma perfeita jogada de projeção do futuro glorioso da MPB. Assim, Orfeu pode até ter descido aos infernos, mas deixou duplos passaportes para o paraíso…

FIM 

 Nísio Teixeira é jornalista, professor da UFMG e intregante da revista Filmes Polvo