Entrevista José Miziara – Parte 2

Dossiê José Miziara

Entrevista com José Miziara
Parte 2 – Boca do Lixo e o cinema

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Laisa Beatris

Z – Porque demorou seis anos para você conseguir dirigir seu primeiro filme, o episódio O Furo?

JM – Houve uma sucessão de empregos, vim para cá, para TV Bandeirantes, fiquei desempregado, vinha divórcio… Depois da terceira mulher, estava no Rio de Janeiro, tinha separado. Um primo meu arranjou para eu ir morar num apartamento de cobertura de uns amigos deles, que alugavam um quarto. Era perto do Cine São Luís. Não tinha o que fazer, fui para o largo do Machado e passava o filme Banana Mecânica, com o Carlos Imperial. Fiquei pensando: “Porra, como pode fazer um filme desse e ser sucesso?” Na época, estava fazendo uma novela na Globo. Em casa, peguei a minha máquina de escrever portátil – que ainda está guardada; vai para o túmulo comigo – e comecei a escrever o Ninguém Segura Essas Mulheres – que não era o Ninguém Segura Essas Mulheres, chamava-se Trambiques. Eram tudo histórias de jornal. A primeira história que escrevi foi vivida por um grande amigo meu, o Aurélio Teixeira. Quando vim para São Paulo, vim dirigir a linha de show da TV Tupi. Encontrei lá o Clayton Silva, que me avisou que nos Estúdios Silvio Santos estavam querendo fazer um filme. O Clayton sempre trabalhou em meus filmes, como assistente, amigo meu desde os tempos da TV Paulista, em 1958. Dei o roteiro para eles lerem. O Luciano Calegari mandou me chamar e pediu para lê-lo inteiro para ele – televisão brasileira é uma coisa; se você manda qualquer coisa escrita, ninguém lê nada. Depois de ler, ele aprovou e foi marcar com o Silvio. Só fiquei sabendo depois, venci 21 outros scripts que tinham chegado lá. Foi marcado com o Silvio Santos numa churrascaria nos Jardins. Fomos nós, eu, o Mário Wilson – o argentino que era o cenógrafo -, o Silvio e o Luciano. Aí sentamos na churrascaria, e o Luciano diz “lê pro Silvio do jeito que você leu para mim”. “Porra? Vai demorar uma hora e meia!”. “Não, pode ler aí”. Porra… li todo o script outra vez. Acabei de ler, o Silvio respondeu “fechado, quanto custa esse filme?”. “Acho que com um milhão faço.” Um milhão daquela época, né? Ele disse: “tudo bem. Você pode estourar em até 10% essa meta”. Assim nasceu o filme. Só que o filme chamava Os Trambiques, aí o Silvio me disse assim: “Não, não, não vamos botar esse nome não porque eles podem associar com o Baú (risos), então não”. Pedi que escolhessem o nome. Na época, o presidente Médici tinha o “ninguém segura esse país”, e o Silvio teve a brilhante idéia de botar Ninguém segura essas mulheres. E não é que deu certo?

Z – Porque são quatro os diretores, um por episódio?

JM – “Você já dirigiu algum filme?”, me perguntou o Silvio. E eu: “Não, mas tenho escola”. “Então vamos fazer o seguinte. São quatro episódios, você me arrume mais três diretores e você dirige um episódio”. Contrariado, mas desde que o dinheiro viesse, topei. Peguei o Anselmo, meu amigo. Três episódios foram feitos no Rio de Janeiro. Sem falar nada comigo, o Silvio vai lá e contrata o escritório, o equipamento, tudo do Jece Valadão, até os telefones. “Mas pô, vocês não falam comigo?”. Contatei o Domingos de Oliveira, que tinha feito um bom filme antes, de que tinha gostado. Ele me respondeu com um bilhete para mim: “Não posso ir na reunião, mas chego aí para dirigir a sua piada”. Eu mandei outro para ele: “Vai pra puta que te pariu, você não vai mais estar nesse filme”. Dei outro pro episódio pro Jece e o outro dei para um amigo meu russo, Harry Zalkowistch, que tinha vindo da Europa, e me ajudou no roteiro, dando dicas de cinema. O episódio do Harry é feito em cima dele, que era muito ingênuo, muito… ele não tinha malícia, sabe? Sabe uma pessoa pura? Ele foi um dos maiores amigos que eu já tive na vida. Morreu lá em Vila Isabel, coitado.

Z – Esse é também o seu primeiro filme com o Antonio Meliande, com quem você trabalhou bastante.

JM – Quando fiz O Furo, tinha montado minha equipe e queria um diretor de fotografia bom. O chefe da produção, Hélio Siqueira, então me disse: “Vou te trazer o melhor de fotografia que tem aqui no Brasil. Ele é o segundo depois do Dib Lutfi! Ele é o melhor de câmera na mão depois do Dib Lutfi”. O Dib Lutfi era considerado o maior cameraman com câmera na mão. Ele me trouxe o Toninho Meliande. Comecei a conversa com ele dizendo que era o primeiro filme que iria fazer. “Não tenho experiência no campo de filmagem. Preciso mais do que um diretor de fotografia, preciso de um irmão”. “Eu topo”. “Então você vai ter a recíproca sempre”, retruquei. Tanto que ele foi contratado dos estúdios do Silvio Santos. Ele não ganhou por filme, não. Tanto que, depois que acabou o filme, ficamos eu, ele e o Hélio bebendo nas custas do estúdio do Silvio Santos, meses. Acabamos, juro por Deus, com o bar em frente. O Silvio não queria despedir nós três e ficávamos lá. A gente chegava lá: “Ô, eu quero minha demissão!”. Eles: “Pô! Vocês não estão recebendo salário? Não tem uma sauna? Então não enche o saco, fica aí”. “Então tá bom. Então vamos pro bar, porra”. A gente ficava no bar o tempo todo e o Anselmo ia para lá (risos).

Z – Você já freqüentava a Boca nessa época?

JM – Não. Quando fui lançar o Ninguém segura essas mulheres, perguntei qual era a melhor lançadora que tinha. Me disseram que era a Cinedistri. Fui lá. Falei com o Aníbal Massaini e fizeram o lançamento do filme – e fizeram muito bem feito, principalmente de olho no Silvio Santos. Principalmente. O filme fez sucesso, deu uma tremenda renda, um tremendo retorno, o Silvio pediu para a gente ir para porta de cinema, perguntar para o povo o que achavam do filme. O Silvio só acredita no resultado. Íamos para as portas do cinema e levávamos as entrevistas todas para o Silvio – e aí ele viu que o filme deu resultado, que foi um sucesso. Quando saiu a concessão do canal, ele parou com cinema. Foi quando se sucedeu aquele episódio de ficar bebendo, pedindo demissão e recebendo salário. O Toninho foi o primeiro: “Não, eu não vou parar minha carreira para poder ficar aqui recebendo salário”. Toninho se mandou. Aí me mandei também. Enquanto ficava lá no estúdio do Silvio Santos, escrevi O Bem Dotado – O Homem De Itu. Quando saí de lá, fui procurar o Aníbal, que era o único que conhecia da Boca. Foi como entrei na Boca. Ele leu e disse: “Porra, é meu. É meu. Vamos fazer”. Quando fiz O Bem Dotado e ele explodiu – foi aquele puta sucesso -, todo mundo queria que fizesse filme para eles. Foi aí que entrei para a Boca.

Z – O Bem Dotado foi o seu primeiro longa, então?

002-300x199JM – Foi. Graças a eles, aconteceu um fato inédito no cinema nacional. A Fama Filmes me contratou, fixo. Não tinha isso no cinema da época. Eu ganhava 50 mil por mês para ser contratado deles e fazer três filmes. Os curtas que queriam que fizesse, para cumprir a lei da obrigatoriedade dos curtas, me pagavam 10% por fora. Nesse esquema, fiz Os Rapazes da Difícil Vida Fácil e As Intimidades de Analu e Fernanda. Sabe como é que conseguiam dinheiro pros filmes? Eles iam na Paris Filmes, por exemplo, com quem fizeram dois, e diziam: “Tenho o José Miziara sob contrato. Quer entrar no filme?”. Pegavam o orçamento, melhoravam o orçamento e pegavam o dinheiro dos caras (risos). Descobri isso ao acaso. Fui assistir um filme da Fama Filmes/Titanus com o chefão da Paris, cujo nome não me lembro, que reclamou do longa. Eu não tinha nada a ver com isso, isso era problema dele. Disse para falar com o Adone Fragano, produtora. Vem falar comigo? “Ué, mas me venderam você”, ele respondeu. “Eeeu? Não tenho nada a ver com isso, quem fez esse filme aí foi o Ary [Fernandes; o filme é Sexo Selvagem, de 1979]”. O bom do cinema é poder. O que vale é o borderô. Se teu filme faturou, na Boca, não tem esse negócio de pai, filho, irmão, nada disso. Sabe? Lá é assim: seu filme faturou, eles vão atrás de você. E, graças a Deus, meus filmes todos faturaram horrores, então os caras vinham atrás.

Z – De onde surgiu a idéia para O Bem Dotado?

JM – Hoje, já posso contar, estou com 74 anos de idade [a entrevista foi feita em julho de 2010]. Há um filme francês, O Último Homem Virgem Sobre a Terra [ao que tudo indica, Le rosier de Madame Husson, 1950, de Jean Boyer]. Se você achar esse filme, você vê O Bem Dotado. Eu plagiei, plagiei mesmo. É um filme com o comediante francês Bourvil. Peguei e passei para Itu – no original, fazem numa vila da França. Duas mulheres que vão ser para juízas, acham o cara lá que é virgem, trazem para a cidade… igualzinho. Pode pegar lá que você vai ver.

Z – Em O Bem Dotado, como surgiu a idéia de usar o som de maneira caricata, quase como se fosse de um desenho animado?

JM – Era para suavizar o tema central, que era o cara com um puta dum pau. Cada vez que ele vai transar com uma mulher, ela dá aqueles berros. Então, como você faz isso? Você bota de uma forma jocosa, de uma forma caricata, como uma forma engraçada para que não fique violento. Porque senão, você já pensou? Se ele faz aquilo, realmente, é um estupro a cada momento. Acho que é por aí o sucesso do filme.

Z – E como você chegou ao nome do Nuno Leal Maia para protagonizar?

JM – Quando escrevi o filme, era para o Teobaldo [personagem que suplantou o próprio Roberto Marquis, seu criador] fazer. Mas o Aníbal o vetou. “Precisamos de um cara que seja um símbolo sexual”, disse. Abri mão do Teobaldo. O Aníbal fez então uma recomendação: “Ó, tem um cara aqui que fez um episódio, chamado Nuno Leal Maia”. Mandei o script para o Rio, o Nuno já morava lá. Nada do Nuno dar resposta. O Aníbal sugeriu então de irmos para o Rio, atrás de outro nome. Ele tinha em mente o Ricardo Petraglia e mandou o script para ele. Lá fomos nós, hospedados no Copacabana Palace, e marcamos para encontrar com o Ricardo Petraglia lá. Estamos no Copacabana Palace, tomando um uísque, e chega o Nuno Leal Maia. “Oi!” (imitando Nuno Leal Maia, risos), com aquele jeitão meio… Eu olhei para o Aníbal, o Aníbal olhou para mim, como quem diz: “Pô, o que é esse cara tá fazendo aqui?”. “Como é? Quando a gente começa a filmar?”, o Nuno perguntou (risos). “Filmar o quê?” “Pô, O Bem Dotado, pô. Não mandaram script?” “Nuno, nós estamos aqui para conversar com o Ricardo Petraglia”. “O Rick Petra? Não, poxa, pô! Eu é que vou fazer o filme.” “Mas, porra, Nuno, você não respondeu nada, você não falou nada”. “Como não? Não, tem nada disso… manda o Rick andar que eu que vou fazer o filme”. O filme era com o Nuno Leal Maia. Aí comecei a conhecer o Nuno, que hoje é até meu padrinho de casamento. Fez três filmes comigo, é meu ator favorito de cinema, assim como eu sou o diretor favorito de cinema dele. No primeiro dia de filmagem, fizemos a estrada, a participação especial do John Herbert, a chegada das duas com a Mercedes, e aí a cena do mato. O Nuno me pergunta: “Como é que eu faço?” “Porra, mas você tá com esse script há quanto tempo?” Eu explico exatamente o que queria, de novo, e ele me vira: “faz pra mim”. Lá fui eu pro meio do mato, e lá vim andando, como eu queria. “Ah, é assim?”. “É”. “Tá bom”. Tinha um eletricista do lado que estava com um boné vermelho. Ele olhou pro boné do cara, tirou o boné da cabeça do cara e botou na cabeça dele. Entrou pro meio do mato e fez a primeira cena. Aí nasceu O Bem Dotado (risos).

Z – Como você escolheu o elenco feminino?

JM – Tinha minhas predileções, como a Consuelo [Leandro], a Maria Luíza [Castelli]. Depois foi para o painel de Playboy: Helena Ramos. A Esmeralda [Barros], minha amigona, desde o Rio de Janeiro. Tem também a Lola Brah, que era a preferida de todas as equipes de cinema. Você chegava para qualquer um… O diretor de fotografia, o Oswaldo [de Oliveira], cada vez que tinha que fazer um close da Lola, meu deus do Céu, lá ia ele procurar tela, não sei o quê, “vamos deixar ela linda”. A Lola era querida de todo mundo. A pior era a Aldine Müller. “Sabe nadar, Aldine?” “Seeei.” “Sabe montar cavalo?” “Pô, sou gaúcha, Miziara.” Não sabia nem montar cavalo e nem nadar. O Oswaldo gritava: “Mata ela, Miziara, mata essa filha da puta”. A gente lá em Itu filmando, aqueles mosquitos comendo a gente: “Aldine, faz assim na água, não precisa nadar. Anda, fica em pé. Finge que nada”. “Nãããão, porra”. E o Oswaldo gritando lá de cima: “Maaata ela, Miziara, mata essa filha da puta”.

Z – Em 1979, você rodou quatro filmes. Como foi balancear isso tudo?

JM – Ah, é aquilo falei: cinema é bom por causa disso, é borderô. Deu dinheiro, os caras vêm tudo atrás. Você fica folgado. Porque, não sei se você sabe, foram todos eu que escrevi.

Z – Todos eles?

Miziara: Todos.

Z – Mas nos créditos Mulheres do Cais não aparece você como roteirista… [assinam Antonio de Pádua e José Sampaio].

Miziara: Como não? Que isso… só se me roubaram o crédito. Esse filme foi o único filme meu que não editei [em consulta posterior, foi checado que, nos créditos, a edição não foi assinada por Miziara em nenhum de seus filmes]. Porra, me lembro tão bem que escrevi. Tem até uma cena da Yolanda Cardoso, que ela ensina à prostituta como descobre doença018-300x199 venérea, que foi um primo meu, médico, que me ensinou quando era garoto, e coloquei nesse script.

Z – Como era trabalhar com o Galante?

JM – O Galante só visa lucro e o lado dele. Foi assim que ele ficou rico, né? De varredor de estúdio, ficou rico porque só visa o lado dele. Só. Mais nada. Mas paga em dia, ouve tudo o que você quer e tem uma mania… “Olha, queria que você fizesse um filme, mas corte-a-corte, corte-a-corte, corte-a-corte”. “O que é corte-a-corte?” Ele odeia o plano-sequência. É uma figurinha.

Z – Era melhor trabalhar com o Massaini?

JM – Não. Não. Se tivesse que fazer mais um filme com Massaini – o Aníbal -, não faria. Ele é um diretor frustrado. Isso no meu entender. Por exemplo, um filme dele para ser lançado demora mais de seis meses de montagem. Todos os filmes dele. O [Walter Hugo] Khouri chiava muito. Porque tem que esperar, e ele é cheio de palpites. É o que te digo, ele é um diretor frustrado. “Porra, pega o filme e dirige você, irmão”, falei para ele. Só que todas as vezes em que foi dirigir, se deu mal. Tem determinados caras que para você trabalhar é muito difícil, atravanca seu trabalho, interrompe. Tudo na vida há duas opções. Quando você quer decidir qual é a melhor, vem o cara com uma terceira. Uma quarta. Aí não. Você vai fazer determinado negócio. Aí fica um outro cara lá dizendo: “Olha, faz o seguinte, ó, faz o seguinte”. Você tem uma linha pra seguir ao fazer o filme. Larguei de cinema mais por causa disso. Muito melhor ser ator de televisão. Trabalho só terça-feira, decoro meia página, o carro vem me buscar em casa, me traz de volta, pagamento tá lá no dia primeiro…

Z – Como é que era a Boca do Lixo, a atmosfera, o ambiente?

JM – Muito bom. Gostava de todo mundo lá. Pelo menos a minha mesa era sempre cheia de gente. A gente ria muito, bebia muito, jogava pôquer toda noite. Todo mundo era legal, a gente era amigo de todo mundo. Se você precisava de um ou de outro, tinha sempre alguém ali para estender a mão. Se o cara pedisse, você podia ajudá-lo sempre. Ali, olha, não tive nenhum desafeto. Fora a bandidagem, também era todo mundo amigo nosso. Porque a gente tinha um trato com a bandidagem. A gente nunca via nada e eles nunca assaltavam ninguém do cinema. Tanto que uma vez assaltaram o carro de uma pessoa, e deram queixa lá pra uma chefe das trombadinhas lá. Em duas horas voltou tudo que tinham roubado do carro e o cara foi expulso de lá à porrada, porque era um bandido de passagem. Não sabia de nada (risos). Ali era muito bom, viu? Então, durante o dia você atendia o mulherio, as meninas que iam ser feitas, os caras de técnica, tudo. Se você fosse fazer um filme, bastava você descer no bar e dizer assim: “vou filmar!”, já vinha a equipe inteirinha, vinha todo mundo lá e você podia escolher quem você quisesse. Quando chegavam as seis horas da tarde, já tava todo mundo no botequim, todo mundo biritando. Chegava as oito horas, subia para um dos escritórios e jogava pôquer até às três horas da madrugada, saía de lá, ia para a padaria, comia alguma coisa e aí vínhamos pra casa. Era uma festa. A gente chegava às dez, dez e meia, onze horas. Ao meio-dia e meia, uma hora, ia se almoçar. O almoço era na base do “quem convida quem”. Então, era sempre uma festa. Uma vida muito boa, você não tinha problema, não tinha nada. Chegava dia 20, chegava o borderô, aí “olha quanto faturei, olha o quanto faturei”. “Hoje pago? Não, amanhã à tarde”. Era isso. Tinha a estréia um do outro, nas segundas-feiras, ia todo mundo. Todo mundo trocava informação.

Z – Como era trabalhar com o Anselmo Duarte?

Miziara: Ah, era uma farra. Era uma farra do cacete. O Nuno, quando era principiante, fez um filme com ele, e o Anselmo o gozou o tempo todo. Quando foi pros Embalos Alucinantes, o Nuno era o principal. Então, começou a ir à forra com o Anselmo. Sabe a cena quando todos acordam e vão para o terraço, pro mar? Você já viu a cara do Nuno e do Anselmo? Eu botei os dois bebendo a noite toda, não dormiram (risos). Eu queria aquelas caras, então botei os dois bebendo. Enchi eles de bebida, beberam a noite inteira. Quando chegou de manhã, os dois ainda dormindo: “filmagem! Eu preciso pegar uma cena do sol, não, não, filmagem!”. O Anselmo tava morto, o Nuno também. O que a gente riu durante essas filmagens, você não faz idéia. Esse Embalos Alucinantes, a gente foi para aquela casa lá, era uma festa. E o Anselmo e o Nuno, os dois juntos, então você morria de rir. O Nuno acabou se tornando um grande amigo meu, o Anselmo também. Eu ia para Itu todo fim de semana com ele. Ele tinha uma namorada feia para cacete, e ele tinha vergonha de sair com ela, mas ela era milionária. E ele tinha que sair com ela. Ele me arrumou uma namorada lá. Mas, para gente sair, a gente não podia ir em Itu, a gente tinha que ir em Campinas, para ir na boate, tudo, dançar, jantar. Aqueles caras lá de Itu se encontram toda noite, então eles não têm mais assunto. Ficam um olhando para a cara do outro, bebendo o chope. O Anselmo, que é rico de assunto – o repertório dele é fantástico -, quando entrava no bar, era recebido pelos velhos: “Ansermo, vem tomar uma aqui”. Todo mundo disputando o Anselmo. O Anselmo sempre tinha uma história. Sempre. Porque, ele partia de um ponto verídico, e fazia um roteiro. As histórias dele sempre são fantásticas, eu sei todas elas. Chegava na Boca era a mesma coisa, todo mundo queria o Anselmo na mesa. Ele tinha cada história que você não faz idéia. O que ele inventava, você ria o tempo todo que ele tava na mesa. O tempo todo. Você ria mais com ele do que com o Mazzaropi.

Z – Como você teve a idéia para fazer o Embalos Alucinantes?

JM – Sempre ia pro Rio, visitar minha filha, fruto do terceiro casamento que tinha acabado em divórcio. Me hospedava na casa do Roberto Maia. E tava deitado, assim, no sofá, encostado, e vi a revista Veja. Peguei aquilo e comecei a ler.

Z – É a mesma reportagem que você mostra no filme?

JM – Exatamente! É a mesma revista. Peguei aquela revista, não conhecia, e comecei a ler – e tinha a história do swing. Pedi para levar aquela Veja de volta para São Paulo. Peguei aquela Veja, botei no meu carro e vim pra São Paulo maquinando. Aliás, porque, passei nove anos indo pro Rio e voltando, ia para lá, sexta à noite ou sábado bem cedinho e voltava segunda de manhã, por causa da minha filha. Pegava ela e ia para o hotel, ficava com ela, e depois eu devolvia e voltava. Esse Embalos Alucinantes foi todo elaborado no trecho Rio-São Paulo. Analu e Fernanda também foi todo elaborado na estrada.

Z – Ao fazer As Intimidades de Analu e Fernanda, você usou o cinema policial americano e noir como referência? Nos jogos de luzes…

0141-300x199JM – Ah, isso é trabalho do diretor de fotografia. Quando escrevi o roteiro, não tinha visto O Último Tango em Paris ainda. Alguém leu o roteiro e disse assim: “Isso aqui é o filme do Marlon Brando, porra. O final é d’O Último Tango em Paris!”. “É?”. “É.” Aí fui procurar ver O Último Tango em Paris, tinha escrito a mesma coisa. A mesmíssima coisa. Aí tive que refazer. Mas mesmo assim ainda ficou meio igual. Não tinha muito como fugir também.

Z – Como você chegou na Márcia Maria para o papel?

JM – Ela era ex-esposa do meu cunhado e uma atriz – e como já sabia das tendências dela… É também uma tremenda companheira de bebida. Quando veio filmar Analu e Fernanda, levou duas malas: uma de roupa e uma de bebida (risos). A Helena Ramos chiava pra caralho: “porra, vem me beijar com aquele bafo”.

Z – Como que era trabalhar com a Helena Ramos?

JM – Ah, a Helena era muito chata. Porque ela é muito burra. Muito burra. Olha, Aldine Müller, Helena Ramos e a Lenilda Leonardi são muito burras. Nunca vi. Lenilda Leonardi, essa bate todas as outras duas. Agora a Márcia era uma maravilha trabalhar com ela. É uma atriz.

Z – E porque usou Helena Ramos em vários filmes?

JM – Era aquele negócio, escolha de produtor. Porque você não pode negar que a Helena sempre foi bilheteria, né? Em O Bem Dotado, o Aníbal que botou ela, não fui eu. No As Intimidades de Analu e Fernanda, tinha que colocar uma que puxasse o elenco, então foi ela. Aquilo me deu um trabalho que vou te contar. Na cena de perseguição dos carros, acho que não aconteceu um acidente por obra e graça do… Ela não sabia dirigir, e tinha que fazer aquela perseguição de automóvel, um com o outro. Mandei vir dois dublês. Me mandaram dois dublês de bigode. Como a Helena não sabia dirigir, disse a ela para se sentar e ficar na direção. E disse para os dublês irem, com as mãos, pisando no acelerador, na embreagem. Não sei como que não caiu no desfiladeiro. Eu tava tão fera com aquilo lá, tava puto da vida, “que se dane”. Falei para a Marcia: “mete o carro em cima, bate lá”. E o produtor: “amassa um pouquinho só, amassa um pouquinho só”. Porra. Aquele filme me deu trabalho. Por causa desse produtor, e por causa do Félix Aidar, que fez a produção também. Dirigindo a cena, dizia: “faz isso, bate o carro aqui, bate o carro ali. Ele ia lá e dizia: “olha, amassa um pouquinho só, viu, amassa um pouquinho só”. “Porra, não pedi pra você fazer isso?”. “Ah, ele falou para amassar um pouquinho só”. Aí que virava bicho. Mas gosto muito do filme. É um dos melhores filmes que fiz. Gosto muito dele.

Z – No Pecado Horizontal, você fez basicamente um filme de três episódios, só que juntou tudo.

JM – São todas histórias verídicas. Todas acontecidas comigo (risos). A primeira história, da hemorróida: comecei a namorar uma secretária lá dos estúdios do Silvio Santos – é minha amiga até hoje, me telefona inclusive -, a Ana Lucia. Fomos pra Santos, chegamos lá e o galã aqui diz “vamos comer um peixe, com molho de camarão, pimenta, e vamos tomar Calamares. Tomamos duas garrafas de Calamares e fomos para o hotel. Na primeira noite, era igualzinho ao filme. “Dá licença, vou no banheiro”. Voltava… “dá licença, vou no banheiro”. Só que não tinha o porteiro, né? Que eu inventei, que é um show do Clayton Silva. Dei a cópia para ele agora há pouco. Coitado, teve um câncer. É um dos meus atores favoritos. Esteve em quase todos os filmes meus. A da tia: tinha um padrinho, lá em Barretos e ela me chamava para jogar escopa, com ela. E lá ia eu jogar escopa, e era a mesma coisa [no filme, o protagonista é amante da tia]. E tinha o cachorro também. A terceira história era de quando era garoto, baseada em outra mulher lá de Barretos, a dona Edith. Só que fantasiei as histórias. Os meninos achei lá em Campestre. Você viu aquele cara que é a cara do Costinha? Impressionante. O negrinho era engraxate na praça, catei lá. Fiz um cursinho rápido com eles lá e botei, porque daqui só levei dois. Levei um, que hoje é diretor da MTV e faz o principal, e aquele garoto bonito [Marcelo Ribeiro] que fez o filme com a Xuxa, Amor, Estranho Amor. É muito biográfico, é um dos filmes que mais gosto, o Pecado Horizontal. Ele fica naquela linha da do cineasta que mais gosto, o René Clair, daquele filme, Grandes Manobras. Ele conta a vida com uma suavidade, com uma leveza, como se nenhum problema fosse problema, nenhum drama fosse drama. Ele é assim, “aconteceu”.

Z – Você tinha preferência em dirigir comédia ou drama?

JM – Não. Tinha mais facilidade para dirigir comédia, porque sempre fui um cara de muito bom humor. Outro dia estava assistindo um filme meu, Os Rapazes da Difícil Vida Fácil. 004-199x300Quando acabou o filme: “meu Deus do céu, escrevi isso?”. Tenho insônia, na madrugada fico aqui na sala. Copo na mão, com vodka, e sentado aqui. Às vezes fico recordando, recordando, de vez em quando fumo um cigarro de palha e vou ali na varanda… “Mas porra, consegui escrever isso?”. Isso já me aconteceu, e não uma ou duas vezes, mais até. Mais até. Esse Os Rapazes da Difícil Vida Fácil fazia muito tempo que não via. Mas me fizeram a cópia em DVD. Inclusive, tem um quarteto de amigos meus lá no filme e não sei se talvez por serem tão bons amigos, goste tanto. Consegui fazer um bloco, que são quatros caras que ficam jogando carta, discutindo – um é o João Loredo.

Z – Seus filmes mostram uma grande diversidade sexual. Por tratar desses temas?

JM – Era tudo jornal. A maioria desses filmes vem quase que de encomenda. Por exemplo, teve uma fase que os produtores chegaram e pediam: “Miziara, dá para você fazer um filme disso, um filme daquilo”. Quando comecei, a maioria era tudo de A Última Hora. Eu pegava o jornal, começava a ler e via o desenvolvimento disso. Como te falei, O Furo é um fato verídico, vem de jornal. A maioria vem disso, vem de história de amigo. Eu parei para pensar e vi que tudo na vida tem conotação sexual. Não existe nenhum pensamento que não tenha conotação sexual. Já reparou isso? Até na história da igreja católica é assim. Você parte do princípio do Adão e Eva, daí em diante você pode ir por toda a história universal. Não existe um rei que foi rei se não tivesse a mulher na história, não existe nada que não tenha uma mulher na história. Não tem. Como fazer uma história? Se você parte sempre desse princípio, é muito mais fácil para você arquitetar. Você vai arquitetando e bate de encontro ao que as pessoas pensam, com o que as pessoas sentem, ou com o que as pessoas ainda não descobriram, mas vão descobrir ali. Então a sua história sempre vai fazer sucesso. É uma forma de pensar. Não quero dizer que isso seja a verdade. Mas é uma forma de pensar. Você vai vendo que tudo vai bater.

Z – Conte um pouco da experiência de atuar em seus próprios filmes.

JM – Tive que atuar por acidente. Por exemplo, Nos Tempos da Vaselina. Fomos filmar na Barra da Tijuca, num motel, o ator tinha que vir, mas houve uma puta duma tempestade, ninguém conseguia subir, chegar lá e o Galante pede: “Miziara, faz, porra, pra mim”. E o Toninho Meliande, que era o diretor de fotografia: “pô, Miziara, faz para a gente ir embora logo, porra”. Era uma cena só. Lá fui fazer um viado. Nos Embalos Alucinantes, me fez passar a maior vergonha da vida. Estava para filmar, e o cara que ia fazer o papel não pode ir filmar, ligou de última hora. Os produtores do filme eram eu e o Oswaldo Massaini, o Oswaldinho, o filho. O Oswaldinho disse: “ó, nós só temos a locação para hoje. Miziara, faz você, então”. Peguei um cara da produção e pedi para ir à minha casa e trazer um terno verde e uma camisa de seda. E tô lá fazendo um viadão no filme. Esse filme me fez passar a maior vergonha da vida. Estou eu lá em casa, em Barretos, onde minha mãe e vó moravam. Minhas primas foram lá e pediram um filme meu emprestado para elas poder exibirem e pegarem a renda – estavam angariando fundos para alguma coisa. Topei. Chego aqui, fui lá na Cinedistri e pedi uma cópia de O Bem Dotado. “Não tem, Miziara, tá tudo correndo”. “Que filme tem meu aí?”. “Tem Embalos Alucinantes”. Ok. Não me lembrava. Mandei o filme pra Barretos. As primas lá saíram vendendo ingresso, lotaram o cinema e convidaram a minha mãe (risos). Minha mãe foi lá para ser homenageada, porque não estava lá. Sentou na primeira fila. (risos). Tadinha, lembro disso até hoje. “Homenagem a José Miziara. Dona Micolinda, muito obrigado ao seu filho, José Miziara e tal”. O cinema aplaudiu, apagaram as luzes, começa o filme. Sabe como é minha primeira tomada, no Embalos Alucinantes? Vem a câmera correndo pelas luzes, abaixa, eu de costas, viro, toda bichona, e pá. A coitada da minha mãe se jogou no chão, escorregou na poltrona e começou a engatinhar (risos), a sair pelo corredor do fundo. Foi de gatinho até o final do cinema, coitada, e foi embora. Me ligou: “Zezé, como é que você me faz isso?”. “Eu não saio mais na rua” (risos). “Mamãe, é um papel, mamãe, é um papel”. “Zezé, pelo amor de Deus!”. Em Barretos, tinham dois viados: o Zé Dastrude e o Camilinha. “Você parecia o Zé Dastrude!”. Fiquei sem ir a Barretos muitos anos (risos). Já imaginou, uma coitada engatinhando pelo corredor? Fugindo sem ninguém ver… (risos). Ai, coitada da minha mãe. “Não me chame mais para ir ao cinema!”.

Z – Nessa época você também atuou muito no trabalho de outras pessoas, não?

JM – Não. Só fiz filmes que eram da minha produtora [Titanus], e eu era o responsável. O filme do Alfredinho [Sternheim, Herança dos Devassos], que o argentino [Cesar Cabral] veio fazer aqui, e botei o Alfredinho de codiretor dele, e depois tiramos o argentino totalmente e deixamos só o Alfredinho dirigir. Faço uma participação porque sou o produtor-executivo. Tinha lá que fazer o advogado, entrei lá. Teve um outro que fiz de favor para um amigo meu, por exemplo. Tem um filme que dizem que trabalhei, A Rota do Brilho. Até hoje não me lembro que filme é esse. Teve um outro do Mário Vaz Filho [A Grande Trepada], em que fazia dois papéis. Eu me lembro que um era de cabelo encaracolado, e outro era de cabelo liso. Era um funeral… Mas, era sempre assim, “vou fazer um favor”. Fiz com o Toninho Meliande um filme lá [O Delicioso Sabor do Sexo], eu, Mario Benvenutti e o Serafim Gonzalez. Um piquenique. Ninguém queria saber de filme nem nada. Mas isso você fazia porque o cara chegava para você e dizia: “pô, Miziara, faz lá pra mim e tal…”.

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