Caiçara

Dossiê Vera Cruz

Caiçara
Direção: Adolfo Celi
Brasil, 1950

Por Vlademir Lazo Correa

Caiçara é o começo da concretização de um sonho. Decorrente de uma época de prosperidade e euforia da burguesia paulista, a Vera Cruz surge no final dos anos quarenta na esteira do sucesso do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). O empresário Franco Zampari contrata Alberto Cavalcanti e monta, em São Bernardo dos Campos, a companhia que teve os maiores estúdios da América Latina, rendendo ao Brasil, além da formação de muitos técnicos e diretores, um moderno parâmetro de produção e uma nova visão da realidade do país dentro do nosso cinema.

Vindo da Inglaterra e dono de profícua carreira internacional, Cavalcanti trouxe da Europa profissionais renomados, como o fotógrafo H.E. Fowle (que permaneceria no Brasil trabalhando posteriormente em filmes como O Cangaceiro, Floradas na Serra, Ravina e O Pagador de Promessas, etc.) e o montador Oswald Haffenrichter (que editou o clássico noir O Terceiro Homem), entre outros técnicos estrangeiros que integram a produção de Caiçara, o primeiro filme da Vera Cruz, com produção de Cavalcanti e direção do italiano Adolfo Celi (mais tarde consagrado mundialmente como o vilão de um dos primeiros filmes do James Bond interpretado por Sean Connery).

Caiçara é sobre uma situação clássica recorrente, sobretudo, em ambientes mais pobres e desfavorecidos: uma mulher sozinha no mundo que se entrega a uma oportunidade de casamento como solução de seu desamparo e que encara essa chance com grande carga de esperança. Para escapar do orfanato e do hospital em que vivem seus pais leprosos, a jovem Marina (Eliane Lage, estreando no cinema aos vinte e dois anos de idade) casa-se com Zé Amaro (Abílio Pereira de Almeida), um viúvo construtor de barcos e que ela mal conhece, e partem juntos para o seu sítio numa aldeia de pescadores no litoral paulista, na distante Ilhabela. A sua chegada altera a cabeça de todos, especialmente a dela própria, e Marina consegue se livrar de uma prisão, mas logo percebe que caiu em outra: a ilha é um local inóspito, com suas casas marcadas pela miséria, e Zé Amaro revela-se uma decepção. Vive de bebedeiras, e se queixa que sua esposa não chora, não fala, não reclama nem ri, dizendo ainda que ela não possui sangue nas veias e é uma tonta que não serve pra nada, ameaçando abandoná-la e ir para Santos.

Entre os dois, quase nada se acerta, e, a principio, Marina se conforta apenas com a presença do menino Chico (Oswaldo Eugênio), cuja pureza se transforma em uma companhia aprazível. Aos poucos, ela se convence que nunca conseguirá se adaptar a Ilhabela, e menos ainda ao marido. Também a incomodam as cobiçosas investidas dos demais homens do local, especialmente as de Manuel (Carlos Vergueiro), sócio do marido, e que pretende conquistá-la à força. Ao pressentir as más intenções do amigo, Zé Amaro entra em conflito com ele, gerando brigas e ameaças de retaliações. Em meio a esse caos e desequilíbrio instalado ao seu redor, a jovem percebe que precisará arquitetar outro modo de fugir da ilha − ou ao menos do marido.

A sua conselheira é Sinhá Felicidade (Maria Joaquina Rocha), uma feiticeira velha e preta, avó de Chico e adepta de macumba, que tem contas a acertar com Zé Amaro, a quem acusa de ser coisa ruim e acreditando ser ele o responsável pela morte de sua filha e ex-esposa do barqueiro. Felicidade se aproxima de Marina na intenção de influenciá-la a arranjar um homem que a mereça, ou pelo menos convencê-la a se livrar do marido. A presença de Felicidade resulta em diversas cenas envolvendo macumba e folclore, num dos primeiros filmes nacionais que fariam representações do misticismo local, antecipando o que na década seguinte algumas obras do Cinema Novo se preocupariam em mostrar nas telas. Em Caiçara, há também o medo de a protagonista carregar a lepra no sangue e cedo ou tarde contraí-la como o peso de uma maldição (ainda que não seja uma doença hereditária). Outras desventuras com Marina levam os demais moradores do lugar a apontá-la como possuidora de má-sorte, mau-olhado ou de estar com o demônio no corpo. O seu envolvimento com o marinheiro Alberto (Mário Sergio) faz com que a narrativa tome outro rumo.

Caiçara representa um recomeço do cinema brasileiro, vinte anos depois de o ciclo de grandes obras mudas do nosso cinema (Limite, Ganga Bruta, etc.) ser interrompido com a passagem para o sonoro. É o marco inicial da produção em grande escala industrial e internacional (o filme representou o país no Festival de Cannes em 1951, numa das primeiras edições do prêmio), com uma elaborada feitura técnica aliada a características tipicamente brasileiras, ao mesmo tempo em que carrega inegáveis influências estrangeiras, com uma referência mais próxima (e malfeita) ao neo-realismo italiano por conta da descrição de uma comunidade pobre e humilde (a trama tem certas semelhanças com Stromboli, de Roberto Rossellini), e um desejo mais secreto e forte de algo hollywoodiano, com a realidade invadindo a tela desde que não tocando no esquema dramático, ficcional. Por outro lado, até mesmo a Companhia Cinematográfica Atlântida (há cerca de dez anos na ativa) somente depois do surgimento da Vera Cruz lançaria as suas comédias mais clássicas e célebres, abandonando o desleixo formal de suas produções dos anos quarenta. Caiçara, para a época, foi um passo para um novo estágio do cinema nacional, a partir de um estúdio que em pouco tempo alçaria vôos bem maiores como os já mencionados O Cangaceiro e Floradas na Serra, para ficar em apenas dois exemplos.