Depoimento de Daniel Chaia

Dossiê Carlos Reichenbach

Falar de Carlos Oscar Reichenbach Filho em poucas linhas é algo muito difícil. Carlão tem uma qualidade que o coloca num grupo seleto de cineastas. Basta olhar alguns fotogramas de qualquer filme seu para percebermos sua assinatura.

Quando entrei na faculdade de cinema em 1993, Carlão era professor na ECA/USP, onde lecionou entre 1992 e 1997. Na ignorância dos meus 17 anos, nunca tinha visto um filme seu, mas sabia que Carlão tinha sido colega de meu pai (atualmente cientista social), na Escola Superior de Cinema São Luis, a primeira faculdade de cinema de São Paulo. Lá, Carlão fotografou um curta inacabado de meu pai (tenho o projeto de um dia restaurar e fazer um filme sobre e com o material).

Na minha primeira semana de aula, o então aluno Arthur Autran organizou uma projeção de O Império do Desejo. Foi para mim uma experiência deflagradora das possibilidades do cinema, comparável ao descobrimento na mesma época de Pierrot Le Fou. A liberdade, a anarquia, a mistura dos gêneros cinematográficos, comédia, drama, filme político, existencial, pornochanchada, as paisagens arquetípicas, o popular e o erudito, tudo na mesma bandeja… O filme me fascinou a ponto de ter sido o tema do meu primeiro trabalho para a matéria Cinema Brasileiro.

Alma Corsária foi outro momento fundamental, numa pré-estréia emocionada na sala de projeção da ECA. Um filme sobre a amizade, como só uma figura tão humana e generosa como Carlão poderia fazer.

Foi em 1997, quando eu já estava praticamente formado, que Carlão me convidou para ser seu assistente de direção em Dois Córregos. Ele me ensinou pessoalmente a fazer o trabalho de assistente – análise técnica, plano de filmagem… E descobri o cinema na prática. Dessa verdadeira formação, carrego uma visão do assistente de direção como um parceiro criativo do diretor, e não somente como um burocrático tocador de set e cumpridor de cronogramas. Foi uma grande produção, como Carlão nunca tinha tido antes. Ele, que em geral fotografava ou pelo menos operava a câmera em seus filmes, agora dispunha de um video-assist, e filmou pela primeira vez com som direto. Depois de Dois Córregos, fui seu assistente em Garotas do ABC, Bens Confiscados e Falsa Loura, além de co-roteirista em Bens Confiscados.

Carlão é talvez o diretor mais adorado pelas equipes técnicas com quem trabalha. Além da gentileza e do bom-humor, fundamentais num convívio que normalmente ultrapassa dois meses, ele tem o conhecimento total de como se cria cinema, dos processos de trabalho, das necessidades de cada área. Carlão decupa o filme no set de filmagem. Às vezes, ele já tem na cabeça boa parte do que vai ser filmado no dia, pois elaborou numa visita prévia, mas em outros momentos é no set que Carlão decide – em rapidez recorde, sempre. Ele diz que não gosta de bater cartão – chegar com um storyboard desenhado e executá-lo. Gosta de sentir o lugar, os atores e atrizes no espaço, a câmera escrevendo o plano.

Um acontecimento na pré-produção de Falsa Loura ilustra bem o tipo de criatividade de Carlão. A uma semana de gravar as músicas que Cauã Reymond iria cantar no filme (e a 10 dias da filmagem do show), ainda não havia resposta de uma famosa banda de rock brasileira quanto à venda dos direitos da música que Carlão queria. Quando qualquer diretor estaria se descabelando, Carlão resolveu com tranquilidade – porque além de roteirista, diretor, diretor de fotografia e ator, Carlão também é músico. Juntos, escolhemos qual dentre as suas músicas era a que tinha uma pegada mais pop. Feita a escolha, no dia seguinte ele já tinha uma letra – Dedo de Deus, cantada como um hit por banda e público. E posso dizer que ficou muito melhor do que teria sido a canção que estava em negociação. A prática de um dos lemas do cinema brasileiro que Carlão adora lembrar – transformar a falta de condição em elemento de criação.

Conhecendo a pessoa e a obra, impressiona o quanto os filmes de Carlão são pessoais. Não são autobiográficos, mas são todos nascidos da experiência de vida dele. Cinema e vida são indissociáveis para Carlão. Talvez seja por isso que seus filmes continuem me transmitindo a sensação extremamente vital que tive ao ver o final de O Império do Desejo. Enquanto os ameaçadores jagunços procuram o casal hippie, os dois terminam de transar na beira do lago. Largam-se de costas na terra, lado a lado. Mas o confronto não aparece no filme. É nesse momento que o filme termina, no momento pós-gozo, na suspensão do tempo, na eternidade que é encontrada no instante em que tudo se integra e a existência faz sentido. Essa visão de mundo está presente em todos os filmes de Carlão. Momentos passageiros em que a vida se realiza com toda intensidade. Encontros que justificam a vida. O cinema de Carlão faz ver isso.

Uma vez ouvi dele uma definição de inteligência. Ele disse alguma coisa do tipo que inteligência é conseguir se comunicar, falar de igual para igual, seja com um camponês analfabeto ou com um industrial magnata. Eu vejo assim os filmes de Carlão. Sem nenhum tipo de concessão comercial, os filmes dele falam com todos, podem ser vistos e apreciados por qualquer tipo de pessoa. Se atualmente não são tão vistos como deveriam, isso se deve ao gargalo geral da exibição do cinema brasileiro. Mas quando são vistos, marcam.

Um dos grandes orgulhos de Carlão é ter sido abordado na rua por um homem que lhe perguntou se ele era o diretor de Filme Demência. Com a confirmação, o homem agradeceu emocionado, e disse que graças ao filme ele tinha tido o desejo de voltar a estudar – e voltou. Carlão faz filmes que transformam. Seja como espectador, seja como parceiro, seja como amigo, estou sempre esperando ansioso o novo filme do mestre Carlos Reichenbach. (São Paulo, 15 de setembro de 2009)

Daniel Chaia é cineasta, e colaborou com Carlão em vários filmes, entre eles, Bens Confiscados