Especial Jece Valadão Cineasta
Obsessão
Direção: Jece Valadão
Brasil, 1973.
Por Daniel Salomão Roque
O mote de Obsessão é o mesmo de muitas outras fitas da década de 70: um homicídio a ser investigado e devidamente punido. O papel de Jece Valadão – prefeito de uma pequena cidade interiorana que, às vésperas de empossar o cargo, tem a esposa assassinada – poderia muito bem ser entregue a Charles Bronson ou Clint Eastwood, tamanha a semelhança entre o personagem que interpreta e o arquétipo hollywoodiano de macho vingador. Há, no entanto, algo que diferencia Obsessão da maior parte dos thrillers de ação que lhe são contemporâneos: trata-se da utilização da realidade nativa como elemento transformador dos clichês estrangeiros.
Sob os créditos de abertura, acompanhamos os últimos momentos da primeira dama. Ela corre desesperadamente por um matagal, mas não enxergamos seu algoz – na tela, vemos apenas o revólver que dispara o tiro fatal. Entre esta cena e a seguinte, temos um lapso temporal de semanas: agora, a câmera se dedica a percorrer, de modo quase documental, os arredores da praça onde se realiza a cerimônia de inauguração do monumento que homenageia a falecida, construído por ordens do prefeito. Tal episódio acirra as tensões já existentes entre o político e a população conservadora da cidade, pois, como descobriremos logo adiante, a primeira dama, que morrera grávida, sofria com os estigmas de “mãe solteira” e “mulher liberal”.
Esse conflito é particularmente interessante por deslocar a atenção do espectador – quase sempre condicionado ao drama individual – para as tensões coletivas. O personagem central do filme não é a moça assassinada, tampouco o viúvo obcecado pela ideia de se vingar, mas o próprio município escolhido como cenário da narrativa, com suas belezas naturais e pequenas lojinhas, sua associação de moradores capitaneada por velhas moralistas, sua praça a centralizar o espaço urbano em torno de uma igreja, seus escrivães preguiçosos, delegados corruptos e, principalmente, seu prostíbulo, frequentado às escondidas pela maior dos habitantes e que as senhoras católicas teimam em chamar de “cabaré”.
O crime propriamente dito é apenas um pretexto para a investigação desse tipo de mentalidade conservadora – não à toa, sua solução passa pela queda das máscaras alheias. Já do prefeito, quase nada sabemos: ele se define por oposição aos outros, e os poucos detalhes que nos são revelados de sua vida pessoal e trajetória política surgem de informações desencontradas, acusações não confiáveis e flashbacks confusos.
Obsessão é a história do choque entre essas duas partes e da maneira como elas se enxergam. Se no final das contas a narrativa favorece uma visão em detrimento da outra, é porque, num mundo de hipocrisia descarada, a empatia pelas figuras ambíguas torna-se nossa única saída.