Entrevista com Carlos Reichenbach – Parte 10

Dossiê Carlos Reichenbach

Entrevista com Carlos Reichenbach

Parte 10: A fotografia

Por Gabriel Carneiro e Filipe Chamy

Fotos: Laís Clemente

Zingu! – O que te fascina na fotografia?

Carlos Reichenbach – Até hoje não consigo separar o cinema da literatura e da música. Consegui separar da pintura – sempre fui um conhecedor da história da arte, era um tema que sempre me interessou -, mas nunca tive habilidade nenhuma. Sempre me foi uma frustração não pintar. Não sei lidar com tinta, textura, mistura… Não sei desenhar uma casinha. Por isso, de certa forma, fui para a fotografia. Com a luz, dava para chegar perto. Sou um defensor da película por causa disso. Não tenho nada contra as novas tecnologias, etc e tal, mas concordo em número e grau com os fotógrafos espanhóis quando dizem que o cinema levou 100 anos para se aproximar da pintura. As novas tecnologias, especialmente a introdução da imagem digital, destruiu essa aproximação. Negativo ainda é insuperável. Levou 100 anos para conseguir chegar perto, para que o Giuseppe Rotunno chegasse no branco absoluto em Dois Destinos – ele teve que revelar seu material na Suíça para conseguir trabalhar com superexposição, por que ninguém queria revelar esse material. Ou para que o fotógrafo de O Poderoso Chefão, o Gordon Willis, conseguisse chegar ao preto absoluto, subexpondo o material. 100 anos para isso, para que a fotografia no cinema se aproximasse de um dos maiores pintores do mundo, no preto absoluto, de Rubens, de Caravaggio. Eu era fotógrafo, eu sei o que quer dizer isso. Eu conseguia verde escuro, mas o preto absoluto nunca consegui – o Gordon Willis conseguiu. Qualquer cinéfilo que se prezes tem que ter o DVD de O Poderoso Chefão porque é a maior fotografia já feita na história do cinema – indiscutível, aquilo lá é quadro. O terceiro filme, para qual as pessoas olham feio, tem certos momentos em que a fotografia nunca conseguira chegar tão perto da pintura como nele. Tem uma seqüência específica em que o Al Pacino se volta para trás, e da metade para cima você não enxerga mais nada, está tudo preto. Quase levantei e bati palma. Verdade. Aí vem essa coisa horrorosa que nos impõe a imagem digital, cor feia, falsa.

Z – O problema do digital seria a maneira como capta a cor?

CR – Os diretores de fotografia espanhóis têm essa teoria de que estamos criando uma geração inteira de jovens cromaticamente deficientes. Por quê? Porque não estão mais conseguindo detectar os matizes, especialmente de verde. Isso é uma teoria verdadeira. Feita pela televisão, do raio catódico, pela digitalização da imagem, pelo cinema publicitário e pela presença absurda de um material não-poroso – o plástico é a morte da cor. Isso é uma teoria deles com a qual eu assino embaixo. O jovem hoje não sabe enxergar o vermelho, ele sabe enxergar o vermelho do plástico. Uma vez eu estava vendo Dois Destinos, numa cópia de vídeo, ruim, dentro do quarto, e mesmo assim você via aqueles tons de branco, com suas nuances. Aí meu filho, com 16 anos, entrou lá e falou: “Putz, pai, que fotografia feia.” Eu quase dei uma porrada na cara dele. Falei: “Ah, vai tomar no teu cú”. “Fotografia feia? O cara se matou para conseguir chegar o mais próximo possível da maior pintura do mundo, seu idiota.” Você entende? Não é culpa dele. Ele está acostumado a ver esse vermelho que está na sua camiseta [Gabriel Carneiro vestia uma camiseta vermelha, mas como ele também está acostumado a esse vermelho, não soube dar mais detalhes]. Isso é vermelho para ele. Isso é deformação cromática. Eu parei de fazer fotografia porque me desinteressou, não quero lidar com fotografia digital. Falam que estou atrasado. Só se for no dia em que o digital chegar na qualidade da película. O trabalho que tinha para chegar em determinados matizes, quando eu era fotógrafo, me faziam suar a camisa. De certa forma, eu construí minha carreira como fotógrafo buscando determinados matizes, especialmente o lilás. Me chamavam porque eu conseguia captar o lilás. Excitação e A Força dos Sentidos: são filmes em que isso era trabalhado constantemente. Eu trabalhava com lã de vidro de geladeira para conseguir dar o tom de pele feminina. Lembro que em Extremos do Prazer a gente se matava. Trabalhava com lã de vidro de geladeira com todas as luzes internas da fazenda, porque em qualquer sítio fora da cidade de São Paulo as luzes são de baixa-voltagem. Vai ficar tudo iluminado? Isso não existe, o filme todo se passa numa casa de campo, não tem aquela luz branca, as lâmpadas tem menos de 110v. Interessei-me em fazer fotografia justamente pela possibilidade de conseguir lidar com um meio de expressão em que não tinha habilidade alguma, que é a pintura, o desenho, o traço em si. O resto estava tudo interligado.

Z – Cinema como mistura de tudo?

CR – Cinema, para mim, sempre foi a soma de todos os meios de expressão cultural. Cinema é literatura e música, na essência. Alguns momentos mais música do que literatura. É dramaturgia, é teatro, claro, e é a pintura. Cinema é um conglomerado das outras artes, é a somatória de todas. Quem disse isso foi o cineasta polonês Jerzy Skolimowski. Eu acho que, num certo sentido, existem coisas limitadoras no cinema, muito mais pela questão financeira – e no Brasil, você tem que aprender a lidar com isso. Fazer como dizia Roberto Santos: “Aprender a transformar falta de condições em elemento de criação.” Acho que essa é a grande escola.

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