Dossiê Carlos Reichenbach
Carlão era amigo do Márcio Souza e havia fotografado um episódio dirigido pela Ana Lúcia, que era na época mulher do Márcio. Nos conhecemos na casa deles, que ficava numa fantástica vila na praça Buenos Aires, em Higienópolis. É incrível, eles não eram ricos, eram estudantes, o Márcio escrevia roteiros para a Servicine, para o Palácios, mas dava para morar ali naquela época. A vila ainda existe, mas hoje é totalmente tomada por comércio. Carlão e eu nos aproximamos um pouco depois, quando comecei a trabalhar com Sylvio Renoldi, como assistente de montagem. Eu havia trabalhado como assistente de direção – na verdade, era mais um estagiário – num filme do Candeias, A Herança, e o Márcio falou com o Sylvio para eu ter esse novo emprego (“emprego, não; trabalho”, dizia o Sylvio). E logo nos reencontramos no Soberano. Não sei se foi o primeiro encontro, mas o Carlão estava bêbado e com ódio do Rubens Ewald Filho. No começo, queria dar um soco nele, depois uma facada, no fim da conversa já queria dar um tiro de canhão. E eu só ouvia, porque tinha sido colega do Rubinho no Jornal da Tarde, a gente sempre se deu muito bem, embora não tivesse as mesmas opiniões em matéria de cinema (ou justamente por isso). O Carlão dizia que não podia beber porque ficava violento. Ele era muito forte, tinha sido lutador de boxe, essas coisas. Além disso, o Sylvio estava montando o Corrida em Busca do Amor, eu não entendia muito bem, ainda, o trabalho de montagem, mas via que eles se divertiam muito. Aí eu costumava encontrar o Carlão na Servicine, ele falava muito de cinema, me instruía muito, ensinava muitas coisas. Ele conhecia cinema profundamente e também pensava muito no movimento cinematográfico brasileiro, porque era o momento do cinema que hoje se conhece por marginal, mas na época não era.
Eu ainda estava começando como montador, havia montado apenas A Selva, do Márcio Souza, e Os Garotos Virgens de Ipanema (que, pelo que soube, consta nos letreiros como montado pelo Sylvio, mas ele montou só a metade do primeiro rolo, depois pulou fora, o Galante deu a ele o cargo de “supervisor”, o que consistiu em duas vezes abrir a porta da sala de montagem, abrir a porta e perguntar se estava tudo bem!), mas o Carlão me convidou para ser montador da Jota Filmes, que ele havia comprado. O que justificava essa confiança? Não faço idéia. Pergunte a ele. Mas, claro, a gente tinha idéias comuns, uma afinidade que já aparecia lá. De certa forma, a gente imaginava tomar parte numa conspiração, ao lado de escritores, poetas, cineastas, amigos em geral.
Trabalhei com ele em três frentes, por assim dizer. Como montador, ele sempre fez questão de estar presente, mas, ao mesmo tempo, dava total liberdade ao montador. É a única coisa que ele nunca fez em cinema, acho. Então ele gosta de ver o que o montador vai fazer. Mas isso não quer dizer, claro, que ele perdesse o controle do filme, nem pensar. Como roteirista, sempre foi muito divertido. Eu chegava na casa dele por volta de 10, 11h da noite. Até 1h ou 2h da manhã a gente conversava, de filmes, de cinema, do que tínhamos visto, nossas experiências. Depois, trabalhávamos até de manhã. A gente ria muito. Me lembro que quando a Lygia, mulher dele, viu o Amor, Palavra Prostituta ela ficou brava: “Vocês não paravam de rir enquanto escreviam, de repente o filme é essa puta tragédia”, algo assim ela disse.
Também como assistente de direção do Amor, Palavra Prostituta foi muito divertido. As equipes eram muito pequenas. Não havia direção de arte. Eu logo senti que o Carlão não tinha como se ocupar dessa parte. Então fiquei muito atento a isso. Ali também entendi melhor como os atores são delicados.
No quesito pessoal, é difícil dizer como ele é. São muitos anos, as pessoas mudam. Não mudam a essência, mas vão mudando um pouquinho os hábitos. Algumas coisas permanecem, por exemplo, ele sempre teve medo de dentista. Não é um absurdo? Ele é casado com uma dentista, afinal. Mas há muitos aspectos. A amizade, por exemplo. Carlão sempre foi muito apegado aos amigos. Hoje a gente se vê menos, por causa dos trabalhos diferentes, mas quando nos encontramos o sentimento é de que estivemos sempre próximos. E o mesmo acontece com amizades que herdei do Carlão, como o Percival de Souza, por exemplo. Ele sempre foi muito dedicado aos amigos. Ao Jairo, por exemplo.
Inácio Araujo é crítico de cinema e amigo de Carlão, com quem trabalhou em vários filmes, entre eles, Amor, Palavra Prostituta